CAPÍTULO XXVIII de Schaff - "Nossa Crença e a dos Nossos Pais"
A heresia não pode ser tolerada ao lado da religião católica, no mesmo reino.
- Papa Pio V.
Os servos de Deus sempre são vencedores, quando combatem com as armas de Deus,
pela causa e culto de Deus -Roger Williams - The Bloudy Tenent of Religion,
Cap. 67.
A heresia é um erro, a intolerância um pecado, a perseguição um crime. - Philip
Schaff.
A LIBERDADE religiosa
é fruto recente da cultura cristã. O princípio, como Paulo o enunciou, de
que as armas da igreja não são carnais, mas espirituais, cedo se esqueceu.
Da condenação a penas espirituais dos que renunciavam a seus ritos, a igreja
passou a impor castigos físicos, a encarcerar os transgressores que lhe desobedeciam
os cânones e até a aprovar sentença de morte, para o obstinado que persistisse
na heresia e se opusesse à "fé católica".
- Com o aparecimento da heresia no seio da igreja, o horror a ela se desenvolveu e os heréticos eram tratados pelos escritores cristãos como sucessores espirituais de Simão Mago e agentes do diabo. A supressão da heresia, por parte da igreja, dentro de seus próprios limites, era uma coisa; a punição dos dissidentes ou dos pagãos era outra. No período que precedeu a Constantino, imperador que se declarara cristão, a igreja não tinha poder para impor penas corporais; mas seus escritores, no zelo pela pureza da doutrina cristã, ao escreverem contra as heresias, se mostravam severos até a amargura na condenação dos que as professavam. Na Grécia a dissidência religiosa era considerada ofensa ao Estado - e uma das acusações que levaram Sócrates à morte, foi a de que ele era pregoeiro de novos deuses. Platão, em sua República, punia os desvios da religião prescrita. A lei romana tolerava os cultos estrangeiros, mas somente ate onde não colidissem com as tradicionais instituições do Estado; e quando Trajano, logo depois do ano 100, transformou em crime capital o fato de ser o indivíduo reconhecido como cristão, isso se deu porque suas reuniões parecia denunciarem uma organização secreta, com objetivos hostis a perpetuidade do Império. Entretanto, se bem que os cristãos professassem a lei do amor fraternal para com os correligionários cristãos, os únicos escritores que o demonstraram em seus discursos sobre a liberdade religiosa foram Tertuliano e Lactâncio, que afirmaram ser a liberdade religiosa um direito inalienável da natureza. Seria deselegante sugerir que eles se teriam expressado diferentemente, se a igreja em seus dias não estivesse submetida à perseguição e lutando pelo direito de existir. Toda honra lhes deve ser dada por sua humanidade e, como acreditamos hoje, por seus sentimentos cristãos em face dos direitos humanos.
Ainda bem não tinham sido abolidas, por Constantino, as leis contra os cristãos, e a aplicação de penas civis, tanto a heréticos como a população pagã, começava. Ário, tratado pela igreja como herético, foi banido pelo Estado. Sob os sucessores de Constantino - Teodósio e Justiniano - a prática dos ritos pagãos foi proibida e depois considerada como crime capital, sendo que os dissidentes das doutrinas cristãs ortodoxas eram punidos com a morte. Quando ocorreram as primeiras execuções de dissidentes cristãos, em 385, somente dois bispos cristãos se opuseram ao castigo. Os chefes eclesiásticos tratavam os heréticos com uma ferocidade de linguagem quase inconcebível. A uniformidade de ritual e o assentimento doutrinário excluíram o amor cristão e a humanidade. Os Concílios da igreja eram cenas de rancor pessoal e abuso ignominioso. Os excessos da maioria por vezes chegavam a violência física, terminando, como no caso de Flaviano, arcebispo de Constantinopla, em morte. Atanásio não poderia ter inventado, para os dissidentes arianos, epítetos mais anticristãos do que os que manejou, ao denunciá-los como politeístas, ateus, fariseus, mentirosos, cães, lobos, demônios. O tratamento dispensado aos pagãos, no trato diário, tinha exemplos, entre as melhores pessoas, de imperdoável descortesia. Gregório Nazianzeno, que não tinha muito a dizer em louvor da piedade e benevolência de Nonna, sua mãe, refere que ela jamais estendeu a mão ou disse uma palavra de saudação a um pagão. O papa Leão I, 450, defendeu a pena de morte aplicada aos heréticos.
Antes de Leão I e cerca de 400, Agostinho, discorrendo sobre a parábola das bodas, baseou-se nas palavras - "Obrigai-os a entrar!" - para ensinar que a igreja tem razão para reduzir os heréticos pela força e para o uso de medidas violentas, tendentes a os reconduzir ao acatamento de suas leis. As autoridades e os teólogos da Idade Media não só citaram o Padre norte-africano para o emprego de medidas de violência, mas consideraram suas declarações como justificativas da pena de morte aplicada aos hereges, extremo a que ele não chegara. Indivíduos eram condenados a morte por discordarem do sistema doutrinário da igreja e guerras foram declaradas contra comunidades inteiras, contaminadas de heresia. Os príncipes cristãos foram chamados a reunir exércitos e marchar contra comunidades como a dos Cathari, do sul da França, sendo que agentes papais acompanhavam as tropas e se regozijavam com as devastações feitas pela espada. Após ter pregado aos eclesiásticos rebeldes daquela região, S. Domingos predisse o recurso as armas, quando doutrinou: "Em vão vos tenho exortado por meio de pregação, oração e lágrimas. De acordo com um provérbio de meu pais - quando as bênçãos nada conseguem, são de proveito os vendaváis - levantaremos contra vós príncipes e prelados que, ai! - armarão nações e reis contra vós" - Cath. Hist. Rev., 1923, p. 90. Nesse mesmo espirito foi a guerra fomentada pelos papas e a Europa cristã se lançou contra os sarracenos, que estavam de posse de Jerusalém: e testemunhas oculares do massacre que houve na cidade santa, narraram sem horror que o sangue dos massacrados correu pelas ruas e subiu, na área do templo, até a altura dos freios dos cavalos dos Cruzados.
Por decreto do Concilio Lateranense de 1215, no caso de o príncipe deixar de purificar seus domínios da depravação herética, o pontífice romano pode dispensar os súditos de tal príncipe de suas obrigações e distribuir suas terras aos católicos fieis. Que outro destino adequado, a não ser a morte, poder-se-ia inferir, quando Inocência III comparou os heréticos a escorpiões que feriam com o ferrão do inferno, ao verme oculto no pó, aos gafanhotos de Joel, ou quando assemelhou a heresia a um cancro rastejando secretamente à maneira da serpente? O poder civil foi compelido, pela teoria eclesiástica e, em certos casos, por especial intimação de pontífices, a tirar do mundo os heréticos. Por expedientes cerebrinos, os escolásticos justificaram. semelhante política. Se eram executados os moedeiros falsos, muito mais o deviam ser os que corrompiam a fé. A heresia era tida como o pior dos crimes. A excomunhão e a privação das recompensas espirituais não constituíam suficiente castigo: Tomaz de Aquino concluiu que os heréticos não tinham direito a vida - meruerunt non solum ab ecclesia per excommunicationem separari, sed etiam per mortem a mundo excludi. Dante colocou os heréticos no lugar mais baixo do inferno; e, cem anos depois dele, o Concilio de Constança assegurou, em decreto formal, que os heréticos deviam ser punidos pela morte nas chamas - etiam ad ignem. Além disso, no ano da eclosão do movimento protestante, o Quinto Concilio Lateranense tornara a desobediência ao papa crime passível de morte. Os poucos eclesiásticos medieváis que ousaram erguer a voz contra a sanguinária política, foram tratados como rebeldes a Deus e a igreja. Quanto a tolerância religiosa, Marcílio de Pádua foi, segundo Lord Acton, mais longe em a recomendar do que o foram os filósofos muitos posteriores - Montaigne e Locke. Condenando o emprego de força física para obrigar a conformidade religiosa, o italiano apelava para as palavras de Tiago 4:12: - Cristo é o único juiz que pode destruir e salvar.
--Os princípios dos Reformadores Protestantes deviam afasta-los de qualquer simpatia para com a velha ordem de perseguição religiosa. A própria revolta em que se empenharam envolvia o direito de dissentimento religioso e de juízo privado. Sua incoerência é uma nódoa impressa no movimento da Reforma; mas é preciso que se leve a crédito do movimento que o número de condenados à morte, por opiniões religiosas, pelas autoridades protestantes, foi relativamente insignificante; e entre os protestantes sempre houve escritores que condenaram o constrangimento religioso. Lutero iniciou mui nobremente suas XCV Teses, declarando que é prática anticristã o uso da espada contra os heréticos. O Espírito de Deus não permite tal coisa. Em seu estudo sobre o Estado Civil, 1523, e outra vez em sua exposição da parábola do trigo e do Joio, 1528, Lutero reafirmou sua opinião. Ah! A partir de 1533, quando expôs a mesma parábola, ele repudiou os conceitos anteriores. Insistindo em medidas de violência contra os Anabatistas e outros sectários, foi movido, em parte, e não totalmente, pelo conceito do caráter sagrado da ordem civil e do dever de obediência às autoridades civis. De outro lado, Leão X e os lideres do velho sistema agiam sob princípio diverso, qual o de que os dissidentes religiosos não tinham direito à vida. Aleander escreveu que "os heréticos devem ser punidos com vara de ferro e fogo, e seus corpos devem ser destruídos para que as almas possam salvar-se". Mesmo Erasmo desejava que Lutero fosse queimado vivo. Com toda a sua violência de temperamento, o Reformador protestante percebeu a inconsistência de sua atitude - e por vezes regressou aos conceitos mais suaves de seu período inicial. Sem hesitação se opôs ao apelo às armas, para sustentar a causa protestante!1
A parte que Calvino tomou na execução de Servetus é citada como prova de que os Reformadores não repudiaram a política religiosa da Idade Média. O erudito católico romano, Paulus, intitula seu capítulo sobre o Reformador - "Calvino a serviço da Inquisição Papal" - desacreditando ao mesmo tempo a Calvino e condenando a política inquisitorial dos pontífices medievais. Não há suficiente desculpa para suas medidas rígidas. Servetus foi condenado à morte por acusações de ordem religiosa e Calvino expressou sua fria aprovação a tais sentenças, no tratado que subseqüentemente escreveu em defesa da execução do espanhol e da pena de morte em que incorrem os transgressores religiosos. O sucessor de Calvino, Beza, defendeu pela pena o mesmo princípio. A Segunda Confissão Helvética e outros Padrões Reformados de Credo, consideraram crimes capitais a idolatria e outros pecados contra a primeira tábua do Código Mosaico. 2
A diferença que houve entre os Reformadores e os pontífices romanos, no tratamento dispensado aos dissidentes religiosos, foi esta: os Reformadores não foram unânimes sobre o assunto e o número de vítimas condenadas à morte pelos tribunais protestantes foi relativamente pequeno. A sé romana foi intolerante desde o princípio e os sucessores de Leão X - Paulo III, Paulo IV, Pio V e Gregório XIII fizeram tudo quanto estava a seu alcance, pela espada e pelo suborno, pelos métodos da Inquisição, pela guerra no mar, e na terra, para destruir os líderes do Protestantismo e esmagar o movimento protestante. Escrevendo a Chiergato em 1522, Adriano VI tratou a "liberdade evangélica" como o disfarce sob o qual Lutero desenvolvia o que se estava processando. Paulo III foi responsável pela divisão da Alemanha em dois campos de batalha e Calvino apreciou o caso com fidelidade, quando escreveu a Carlos V que Paulo "não havia desencadeado outra coisa senão sangue e morticínio, como vós mesmos podeis testificar. Tivésseis amparado sua fúria, e a Alemanha de há muito teria sido afogada em seu próprio sangue". Nenhuma palavra saiu do Vaticano para reprovar os jesuítas, que lançaram mão de todas as medidas conhecidas pela violência humana para exterminar os novos sectários. Os jesuítas provaram ser, como disse Lord Acton, "os inimigos mais implacáveis que a liberdade mental e moral jamais havia conhecido". O tribunal romano da Inquisição, criado por Paulo III, teve a concorrência aberta de Inácio de Loyola, que também excitou o pontífice a revalidar o mandamento de Inocência III, proibindo que os médicos atendessem aos enfermos, enquanto não se confessassem - Döllinger-Reusch, p. 331. Principalmente sob Paulo IV, 1555-1559, a própria Roma. se transformou em cenário de prisão e execução de heréticos. Recentes escritores, como Balmes - p. 208 - e um colaborador da Revista de Dublin, 1850, afirmaram que a cidade papal nunca assistiu a uma execução por ofensas religiosas; mas o contrário foi provado pelas investigações de Döllinger, Pastor e Lord Acton - todos historiadores católicos romanos. Luteranos, Calvinistas, Valdenses, Anabatistas e Livres Pensadores foram submetidos a morte. Lord Acton citou Pistoja, um capuchinho, a pregar que os heréticos estavam sendo diariamente enforcados ou esquartejados em Roma. Em 1567, a Inquisição isentou de censuras os membros do clero que faziam parte de seus tribunais de Veneza e de outras cidades italianas, caso votassem pela aplicação da pena de morte. Até hoje os documentos preservados na casa da Inquisição Romana continuam trancados, mesmo a Pastor, que disse que o número de suas vítimas jamais será conhecido.3 Pio IV louvou, em 1562, a lei da República de Lucca, que, "agindo sob pressão de Roma" Prometia a recompensa de 300 libras a quem matasse um refugiado protestante. Se nos voltarmos para a Inglaterra, ali assistiremos as cenas sangrentas ordenadas sob Maria Tudor, cujo marido, Filipe II, teria gostosamente introduzido no reino o sistema espanhol integral dos autos-de-fé. No reinado de Isabel, o papa, os jesuítas ingleses e Filipe se uniram, no esforço de sufocar a heresia inglesa pela guerra declarada, incitando a rebelião entre os súditos da rainha e tramando a morte da mesma rainha. É difícil, senão impossível, compreender como os estatutos ingleses, dirigidos contra os jesuítas e seminaristas de Douai e Rheims, poderiam deixar de os declarar "conspiradores públicos e confessos, culpados de alta traição". 4
As perseguições religiosas na Holanda, França e Boêmia enegrecem as páginas da história moderna. Nas províncias holandesas, Filipe II condenou a todos, com exceção de uma lista selecionada, como heréticos e dignos de punição. Mesmo crianças foram entregues as chamas, por lerem as Escrituras. O papa deu sua aprovação as medidas sangrentas, enviando um chapéu ornado de jóias e uma espada ao duque de Alba, em recompensa pela execução judicial de 18.000 pessoas, por motivos religiosos, durante o exercício de seu mandato - 1567-1573. A mensagem que lhe foi enviada pedia que o governador geral "se lembrasse, ao colocar o chapéu na cabeça, que por ele ficava resguardado, como por um escudo de justiça, constituindo ele um penhor da coroa celestial preparada para todos os príncipes que sustentarem a fé católica romana". A legenda gravada na espada dizia: "Recebe esta santa espada como dádiva de Deus, e com a qual abateras os adversários de meu povo de Israel".
Na França, a política de perseguição se inaugurou quando Francisco I assistiu, em Paris, a queima de um grupo de seus súditos. A ordem dos jesuítas foi, em parte, pelos seus ensinos, responsável pelo assassínio de dois reis de França e pelo massacre do dia de S. Bartolomeu, em 1572. Pio escreveu ao conde Santifiore: "Não faças prisioneiro nenhum huguenote; mata a todo que cair em tuas mãos". Segundo Lord Acton, o massacre não foi "um ato súbito e sem premeditação". Três anos antes do evento, o pontífice escrevia ao rei da França: "Quando Deus vos der e a nós a vitória, será de vosso dever punir os heréticos com toda a severidade, vingando assim não só vossos próprios agravos, mas os de Deus Onipotente". Citou o exemplo de Saul, que foi punido por ter poupado aos Amalequitas, e adiante escreveu que "sob nenhuma circunstancia e por nenhuma consideração devem ser poupados os inimigos de Deus". Depois o pontífice romano escreveu a Carlos IX para que prosseguisse na obra de morte, até que todos os huguenotes se retratassem ou perecessem - Acton, Cor. 122:135. A chegada a Roma das notícias do massacre de S. Bartolomeu foi como o sinal para o regozijo. Os canhões de Santo Ângelo deram salvas; foi cantado "Te Deum" na igreja de S. Marcos e uma medalha de bronze foi cunhada, tudo por ordem de Gregório XIII. 5 De um lado da medalha esta representado um anjo, empunhando uma cruz e uma espada nua, a dirigir os assassinos nas ruas de Paris, e contendo as palavras - "O massacre dos huguenotes" -, Ugonotorum strages. Do outro lado aparece a efígie de Gregório. 0 pontífice escreveu a Carlos IX que "o massacre constituía para ele, papa, melhores notícias do que seriam as de cem vitórias de Lepanto" - a vitória decisiva sobre a armada maometana, em 1571. Mais tarde Gregório demonstrou seu entusiasmo, chamando ao Vaticano o artista Vasari para fazer a pintura colorida da ocorrência - e pelo menos uma de suas telas ainda permanece no palácio papal. Gregório XIV enviou. 4.000 homens para auxiliar o extermínio do partido huguenote.
O cardeal Gibbons, que expressa "repugnância por aquela matança desumana", e outros escritores católicos romanos, continuam na tentativa de eximir o pontifique de ter-se exultado com a tragédia ds S. Bartolomeu: diz o cardeal que "a religião nada tinha a ver com ela e Gregório a ignorava inteiramente". O Dr. Milner, tentando absolver o papa, atribui o fato a "negra vingança de Carlos IX e a ambição cruel de Catarina de Medici". Esses e outros escritores romanos não fazem menção da medalha, nem da pintura do Vaticano.
A defesa argúi que os papas e as cortes eclesiásticas nunca pronunciaram efetivamente sentença de morte; mas, ainda que se baseasse em fundamentos sólidos, o argumento não seria procedente; eles sabiam que a execução da pena de morte, pelo magistrado civil, devia tão certamente seguir-se a sentença eclesiástica de heresia, como ao golpe sucede a ferida. Jamais publicaram um decreto oficial, intimando o Estado a revogar suas leis. Um escritor do século XI explicou a conduta do papa, mas o não inocentou, ao escrever que "nosso papa não mata nem condena a ninguém a morte física, mas a lei submete a morte aqueles a quem o papa consente sejam levados ao patíbulo: matam-se a si mesmos os que praticam as coisas que os tornam sujeitos a morte"- Martène, Thes. V:1741. Cinco séculos depois, Sander, em sua Rocha da Igreja, pag. 103, assume atitude semelhante, ao defender os papas com afirmar que o "bispo de Roma nunca puniu, com a espada material, a pessoa alguma que tenha abandonado a igreja, mas somente pune com as censuras eclesiásticas". O tribunal da Inquisição foi, do começo ao fim, expediente papal, ou teve, como no caso da corte espanhola, a sane, ao papal. Gregório IX efetivamente exigia do senador romano ao tomar posse, o juramento de que prenderia e puniria heréticos oito dias depois que fosse proferida a sentença eclesiástica. Numa carta a Maria Gladstone, Lord Acton formulou o juízo segundo o qual "os papas foram, através da Inquisição, não somente assassinos por atacado, mas fizeram do princípio homicida uma lei da igreja cristã e uma condição de salvação".
Na Boêmia, o protestantismo
foi, segundo todas as aparências, aniquilado. Esse ato constituiu a obra-prima
dos jesuítas. Pela destruição dos livros sagrados e pelas chamas, e por outros
métodos de morte e de guerra, lutaram contra João Huss e contra sua memória.
Quatrocentos mil cidadãos da Boêmia deixaram, ao que se diz, a terra natal,
e Döllinger afirma que, enquanto noventa por cento da população eram, ao começo
da perseguição, hussitas, nem um por cento se deixou, no encerramento dela.
Quando se pôs termo a guerra dos Trinta Anos, em 1648, com o Tratado de Westphalia,
Inocência X, longe de aplaudir a cessação das hostilidades que haviam desolado
a Europa central, condenou o tratado com uma arenga cheia de adjetivos latinos,
sendo que a cláusula que estipulava que os súditos seguissem a religião de
seus príncipes, o pontífice a denunciou como "revogação da soberania
de Roma e, portanto, sem efeito, inepta, iníqua, injusta, condenada, reprovada
e para todo o sempre perfeitamente nula - viribus et affectu vacua omnino
fuisse et esse et perpetuo fore". Embora parecesse que, por obra
dos jesuítas, o hussitismo tivesse sido, na Boêmia, sepultado em túmulo tão
profundo quanto as entranhas da terra, uma nova nação surgiu, a qual inscreveu
a liberdade religiosa entre suas leis e teve como presidente um admirador
e partidário franco de Huss. Grande parte do povo rompeu com a autoridade
romana. Bíblias escondidas durante séculos tem sido trazidas para a luz do
dia e Huss foi e é glorificado como herói nacional. Em 1918, por ocasião do
tricentenário do início da Guerra dos Trinta Anos e da execução, em Praga,
de vinte e sete nobres hussitas, o povo derrubou, a orgulhosa estatua de Maria,
erigida na praça pública, e perto desse lugar se ergueu um grande monumento
a memória de Huss.
-O Cardeal Belarmino deu expressão às idéias romanas de seu tempo, o século XVI, quando argumentou em favor do método medieval de tratar com os heréticos. Seus argumentos procedem de cinco fontes: - as Escrituras; o testemunho de Agostinho, Leão I e outros Pais da Igreja; as leis de Teodósio e de outros imperadores romanos; e considerações tiradas da razão e da observação. Se os heréticos podem ser excomungados - assim raciocinava o cardeal - melhormente podem ser entregues a morte, porque a morte temporal e calamidade menor do que a excomunhão. A punição espiritual e eterna em suas conseqüências. Os falsários são condenados a morte; e a heresia, sendo uma falsificação da fé, merece a mesma pena. A mulher que repudia seus votos conjugais é entregue a morte; muito mais o deve ser aquele que viola seus votos para com Deus. Prossegue o cardeal dizendo que o membro da igreja romana não é mais livre para renunciar sua aliança do que o monge o é para renunciar a seu voto de castidade. A sentença de morte é uma proteção para o fiel, que precisa ser resguardado da influencia mortal do contato com heréticos, e uma graça para o próprio herético, desde que a sentença possa livra-lo de agravar a própria perdição, por aumento de sua heresia - majorem sibi damnationem. O cardeal também tomou a posição segundo a qual a igreja tem autoridade para mover guerra contra os maometanos. Deleitou-se em ridicularizar a Lutero, por incorrer em "criancice e impudência", asseverando que "a igreja" nunca havia levado ninguém a morte. Ao contrário - continua o cardeal - muitos tem sido executados com aprovação da igreja. Belarmino foi seguido pelos membros de sua ordem, que justificam a execução por motivos religiosos. 0 jesuíta Raynard, falecido em 1663, declarou ser a heresia o mais monstruoso e destrutivo dos crimes, sendo penalidade justa o queimar-se o herético. De passagem, quando Lutero disse que a igreja nunca levou ninguém a morte, tinha em mente a real igreja cristã, a sociedade dos verdadeiros crentes.
Luiz XIV, honrado como
patrono e defensor da igreja romana; violou o pacto solene da nação, o Edito
de Nantes, publicado em 1598, que concedia aos huguenotes direitos perpétuos
em França, submeteu as famílias huguenotes as dragonadas e baniu do pais os
transgressores obstinados ou os entregou às galés. A alta personagem que foi
Afonso de Liguori aderiu aos louvores do soberano francês, considerando-o
como "o rei cristianíssimo, o grande Luiz" e a grande coragem com
que puniu a todos os agrupamentos de seguidores de Calvino com prisão e confiscação
de bens, e por ter banido da França muitos milhares de famílias heréticas.
6 De£endendo a cruzada do rei, Bossuet e o clero francês recorreram ainda
as possíveis inferências do texto: "Obrigai-os a entrar". Por outro
lado, a perseguição real provocou um dos mais nobres apelos em favor da tolerância,
o apelo do protestante Bayle.
- Os países protestantes abriram caminho a aprovação de leis de tolerância religiosa. O primeiro edito nacional concedendo tal tolerância foi publicado na Holanda, em 1584. Na Inglaterra a completa tolerância custou a se tornar lei do reino, mas os progressos nessa direção foram contínuos, apesar da interrupção verificada sob os reis Stuart e depois de seu tempo. Os suplícios que ocorreram durante o reinado de Maria de Tudor se detiveram quando Isabel subiu ao trono, em 1558, embora se negasse reconhecimento oficial aos Puritanos e católicos romanos. Ao alvorecer do século XVII, Ricardo Hooker revelou espírito tolerante em sua Política Eclesiástica. Foi secundado por testemunhos em prol de melhor tratamento dos dissidentes da religião do Estado, notadamente por Chillingworth, que fez um apelo em defesa da liberdade de consciência, dizendo que "nos contentássemos com induzir os outros a unidade, caridade e mutua tolerância, desde que Deus não autorizou que nenhum indivíduo forçasse todos os homens a unidade de opinião ... Suprimi essa perseguição, fogueira, maldição e perdição de homens, por não subscreverem palavras de homens. Exigi dos cristãos somente a crença em Cristo e que não chame de Mestre senão a ele só". A Assembleia de Westminster, sem adequada compreensão do principio de tolerância, colocou em sua Confissão estas palavras: "Só Deus é senhor da consciência". Cromwell alargou as fronteiras da tolerância nacional, de modo a abranger os judeus, que tinham sido banidos da Inglaterra cinco séculos antes. 0 Ato de Tolerância de 1689, embora negasse liberdade aos católicos romanos, assinalava progresso na direção eqüitativa. Escritores como Sidney e Loeke elaboraram teorias no tocante a liberdade. O sentimento do povo inglês e as leis do pais gradualmente suprimiram, toda desqualificação baseada em considerações religiosas.
É verdade que na França
a liberdade de consciência teve zeloso e influente advogado, não, todavia,
na pessoa de um orador de igreja, mas em Voltaire e em outros livres-pensadores.
O que diretamente deu azo ao ataque de Voltaire a política tradicional do
pais foi a perseguição da família Calas, família protestante de Toulouse.
O pai fora acusado de ter assassinado o filho, ou de o haver induzido ao suicídio,
antes que o visse ingressar na comunhão romana. O pai foi submetido ao suplício
da roda e outros membros da família foram postos a ferros ou recolhidos a
conventos. Inteirando-se do caso, Voltaire continuou a discutí-lo pela pena
e nas cortes, até que o rei da França se viu constrangido a anular a sentença
já proferida contra as infelizes pessoas e a conceder pensões aos sobreviventes.
A Revolução Francesa e o Código Napoleônico mantiveram a liberdade de consciência.
A completa liberdade religiosa encontrou seu primeiro lar no solo americano e Rhode Island se tornou, na história do mundo, a primeira comunidade em que ela se tornou lei fundamental. Seu zeloso advogado, o rev. Roger Williams, atravessara o Atlântico pela liberdade da alma, como a tratava, e, por sua causa, em parte, sofrera banimento de Massachusetts e os rigores do "deserto gemedor" em tempo de inverno. Providência, onde se refugiou, devia ser, segundo suas próprias palavras - "asilo das pessoas oprimidas por motivo de consciência". Em seu tratado - The Bloudy Tenent of Conscience- defendeu aquele princípio, enfrentando a pena do sustentáculo teológico da teocracia no Massachusetts, rev. João Cotton. Williams conquistou merecido lugar na Galeria da Fama. Foi o progenitor dos Fundadores da República Americana, que manteve a Constituição isenta de distinções religiosas. O estado de mente do Massachusetts foi evocado por um dos contemporâneos de Williams, em um de nossos mais curiosos, livros - The Cobler of Aggawam, escrito pelo rev. Natanael Ward, de Aggawam, hoje denominada Ipswich. O escritor expressou a opinião de que "O Estado pode ser conivente com religiões e opiniões falsas, em alguns casos, mas não admitir nenhuma delas"; sendo que o Estado que tolera religiões falsas é "um jardim zoológico, um aviário de erros". A liberdade de consciência ele a declarou ser nada mais do que " a libertação do pecado e do erro" e adiantou que "ficava atônito ante os que intercediam por que os homens tivessem liberdade em sua consciência, uma vez que é perseguição o privá-los de a ter". Ainda em 1683, o presidente Oakes, do Colégio de Harvard, se expressava nestes termos: "Encaro a tolerância como a primogênita de todas as abominações. Foi a tolerância que tornou o mundo anticristão". Em Boston a opinião sofria, entretanto, mudança, como o prova o exemplo de Cotton Mather. Tem-se corajosamente alegado que os católicos romanos foram os precursores da liberdade religiosa no Continente Americano pela tolerância dispensada aos protestantes na colônia de Maryland. Apela-se para a carta de instruções que Lord Baltimore, católico romano, endereçou a seu irmão, Leonardo Calvert, que conduziu os primeiros colonizadores, em 1634, para que "no mar e na terra o contingente protestante não fosse molestado por palavra ou ato".. Os fatos são estes: as Instruções se basearam em considerações de conveniência e não no caráter sagrado das convicções religiosas. Lord Baltimore não mencionou os direitos da consciência. Havia iniciado a empresa com intuitos comerciais. A política de porta aberta se tornou imperativa, em face das opiniões religiosas dos colonos, cuja maioria era de protestantes. Também ela se tornava imperiosa, em face da Constituição de Maryland, que exigia que as igrejas e capelas fossem ali "consagradas segundo as leis eclesiásticas de nosso reino de Inglaterra". Lord Baltimore, como patrão, não podia ter feito outra coisa. Num discurso pronunciado na catedral de Westminster, em Londres, o cardeal Gibbons proclamou que a liberdade civil e religiosa fora primeiro estabelecida na América pelos fundadores do Maryland, e firmou sua declaração num trecho tirado da primeira edição da História de Bancroft, que dizia que "em Maryland a liberdade religiosa tinha seu único lar em todo o mundo e a consciência não sofria constrangimento". Os parágrafos citados continuaram a aparecer nas edições posteriores do livro do cardeal - "A Crença de nossos Pais" - sem nenhum vestígio de referência ao fato de haver Bancroft introduzido, na segunda edição de sua obra, certa modificação de seu primitivo asserto. Nessa edição ele escreveu que Roger Williams foi a primeira pessoa na Cristandade moderna a definir, em sua plenitude a doutrina da consciência, a igualdade de opiniões perante a lei. A declaração do cardeal Gibbons, ao tempo em que foi feita, provocou refutação da parte de Gladstone. Na colônia de Maryland os sacerdotes não hesitaram em ler publicamente -a bula - in coena damini - com as maldições assacadas aos protestantes e outros, heréticos e malfeitores - Neill in Founders of Md., p. .101. Paulus foi bastante engenhoso para dizer a verdade e considerar as Instruções dadas a Leonardo Calvert como assunto de "precaução política". Nenhuma suspeita de expediente comercial ou político jamais se levantou contra o fundador de Rhode Island. Williams se bateu pela liberdade de consciência como direito natural, de aplicação universal.
Ao tempo em que estava iminente a separação das
Colônias Americanas da Inglaterra, a liberdade de consciência, em matéria
religiosa, tinha-se tornado convicção generalizada, do Massachusetts a Geórgia.
Dirigindo-se aos Batistas de Baltimore, que haviam trabalhado na Virginia
em infringência das leis religiosas da colônia e sob protestos do clero Episcopal
estabelecido, disse Jefferson - Obras, 8.137: "Em nossas primitivas
lutas pela liberdade, a liberdade religiosa não podia deixar de tornar-se
assunto primordial". Ele considerava como um de seus atos principais
o fato de ter sido autor do estatuto virginiâno de liberdade religiosa. A
liberdade civil e religiosa, foram reunidas inseparavelmente pelo Primeiro
Congresso Provincial do Massachusetts, de 1774. Nas Instruções dadas, um ano
depois, a Arnold, ao iniciar sua expedição a Quebec, Washington recomendou
que tivesse cuidado com os direitos da consciência e recordou que "somente
Deus é o juiz dos corações humanos e só a ele devem os homens dar contas".
Finalmente, no solo americano, cultivado quase inteiramente, do Massachusetts
a Geórgia, por descendentes de protestantes, os princípios de completa liberdade
religiosa e de liberdade de palavra e de imprensa foram expressos na Constituição,
cuja linguagem memorável diz: "O Congresso não fará lei tendente ao estabelecimento
de uma religião ou a proibição do livre exercício dela, ou a tolher a liberdade
de palavra e de imprensa". A clausula referente a religião foi reconhecida
prontamente pelas diferentes igrejas. Em sua carta aos Batistas, 1789, Washington
os louvou, porque "uniforme e quase unanimemente, tinham sido os amigos
firmes da liberdade religiosa". No mesmo ano, a Assembleia Geral Presbiteriana,
dando apoio ao Ato Constitucional, declarou que "Só Deus é senhor da
consciência. Em todos os assuntos que dizem respeito a religião, os direitos
de juízo privado são universais e inalienáveis e não desejamos ver nenhuma
organização religiosa sustentada pelo poder civil, além do que possa ser necessário
à proteção e segurança, sendo isso ao mesmo tempo extensivo a todas as outras".
A liberdade religiosa e a liberdade de palavra, declaradas direito inalienável
pela Convenção Americana, com apenas duas ou três exceções de protestantes,
foram adotadas pelas Repúblicas Sul Americanas, a começar com Buenos Aires,
1813, ainda que com o costumeiro protesto da sé romana.
- A teoria protestante de liberdade de consciência tem prevalecido cada vez mais em todos os países protestantes, até a Suécia e Noruega. Por outro lado, a liberdade religiosa, a medida que tem sido conquistada em nações católicas romanas da Europa e da América, tem-no sido em face da oposição das autoridades romanas.
Pontífices recentes, como Pio IX, Leão XIII e Pio X, sustentam a atitude tradicional dos papas, de exclusivo direito da igreja romana, de preeminência do governo papal lá onde esta tenha sido a regra e a restrição da liberdade religiosa. Lehmkuhl, 2:790, admite que Pio IX, em sua quanta cura, declarou que a liberdade de consciência e de culto não é direito natural. A afirmativa feita por Pio IX, escrevendo a Guilherme I, da Alemanha, em 1875, que "todos os que foram batizados pertencem, de algum modo, ao papa", parece quase burlesca a um protestante. Leão XIII decepcionou todas as esperanças de que se subtraísse as pretensões tradicionais dos papas e aprovasse as idéias modernas de tolerância religiosa e liberdade de opinião. Em sua bula immortale dei, de 1885, confirmou os pronunciamentos de Gregório XVI e o Syllabus de 1864, que condenara como demência a proposição segundo a qual a liberdade de consciência deva ser concedida a todos; mas, em aparente contradição, acrescentou que a igreja não condena os governos que, "para alcançarem algum benefício de vulto ou evitarem algum grande mal, pacientemente permitem" o costume da tolerância, se já anteriormente implantado. Ao longo de sua encíclica, Leão fala da igreja romana como idêntica à religião cristã e afirma que, sendo divinamente esclarecida, ela e a mais exaltada das autoridades, sendo que "foi do agrado de Deus houvesse um governador para estar a testa de todos os governos e ser o principal e infalível mestre da verdade, ao qual foram entregues as chaves do reino dos céus". Os Estados e indivíduos de "propósitos desprevenidos e sinceros" - afirmou, adiante, o papa - não -podem encontrar dificuldade em descobrir "a verdadeira religião", que é o sistema católico romano. A intenção de Leão é clara como o dia, porque ele contrastou o movimento do século XVI com a "verdadeira religião" e condenou aquele movimento "como a principal fonte de todos os princípios modernos de desenfreada licença, grosseiramente concebida e revelando-se nas terríveis convulsões do século XVIII". O ensino de Leão acerca do direito da juízo privado. em matéria religiosa, segundo foi expresso pelos comentadores americanos Ryan e Millar, e que "em um Estado genuinamente católico, a autoridade pública não permitirá a introdução de novas formas de religião; mas, quando várias denominações já estejam estabelecidas, o Estado pode permitir, o que geralmente faz, que todas elas continuem a existir e a funcionar, pela razão de que poderia ser ruinosa a comunidade a tentativa de as suprimir.8 A política papal, conforme foi definida pelo mais hábil dos papas recentes, choca-se, portanto, com a teoria da Constituição Americana, que trata a liberdade religiosa como direito inalienável. Aquela política parece tolerar a prática americana somente até que possa vir o tempo em que as pretensões papais venham a ser impostas, com o auxilio da população católica romana. Em sua encíclica libertas, Leão explicitamente condenou "as chamadas liberdades modernas", principalmente a liberdade de palavra, de imprensa, de ensino e de culto, negando que tais liberdades sejam direitos outorgados por natureza.
No novo Index de livros proibidos, publicado por Leão, este interditou aos católicos a leitura de obras que defendam heresias e cismas, ou contenham negação dos méritos divinos de Maria e dos santos, e também obras escritas por não-católicos, versando sobre religião. Na igreja do Latrão, quando inaugurou o esplendido monumento erguido a Inocência III, Leão teve rara oportunidade de pronunciar alguma palavra em favor da liberdade de pensamento e de discurso, e de reprovação ao tratamento dispensado aos dissidentes religiosos, na Idade Media e depois. Nenhuma palavra nesse sentido lhe saiu da pena. Pelo contrário, em 1900, demonstrou seu apego à tradição papal, ao ser inaugurada, no campo de Fiori, em Roma, a estátua de Giordano Bruno, que havia sido esfolado nu e queimado naquele lugar, três séculos antes - fazendo publicar um protesto contra o monumento, protesto em que ele, papa, declarava Bruno "um homem de vida descuidada e impura".
O predecessor de Leão, Pio IX, elevando a dignidade de santo a Pedro Arbuez, o inquisidor espanhol morto pela população espanhola, não deu sinal algum de que reprovava o tribunal de Inquisição de Espanha. E o sucessor de Leão, Pio X, exaltando a semelhante dignidade Pedro Canisius, que ensinava ser a heresia coisa que devia ser tratada como doença, devendo ser o povo ensinado a odiar os heréticos - outra vez repetiu a acusação de que o Protestantismo e a desordem, sendo responsável pelos males sociais e revoluções dos tempos modernos. Em suas encíclicas contra o Modernismo, Pio não só condenou o livre exame, mas proibiu que os estudantes católicos manuseassem livros que contenham ensinos heréticos, encarregando aos bispos de todo o mundo de enviarem regularmente relatórios ao Vaticano, sobre o cumprimento daquela lei e sobre o fato de os seminários católicos não admitirem escritos de procedência herética.
Segundo Koch, o Analecta ecclesiastica, periódico oficial saído do Vaticano, reeditou, em 1895, uma declaração feita em 1484, louvando o inquisidor espanhol, Torquemada, pelos benefícios que havia prestado ao Estado e a religião, punindo apóstatas e judeus com os castigos mais severos. O documento continha .a exclamação: "Ó, chamas benditas, pelas quais milharas foram libertados das garras do erro e talvez da perdição eterna!... Ó santo e venerando nome de Tomaz Torquemada, que fez que as pessoas recuassem da apostasia, por medidas de força e santo temor!" Em 1901, o jesuíta De Luca, em sua obra sobre a Lei da Igreja, incluiu a morte entre as penalidades adequadas a desobediência à igreja.
Até mesmo um distinto prelado americano, o bispo Gilmour, não se absteve de repetir, como se fossem verdadeiras, velhas histórias que expõem o pretenso destino horrível das pessoas que discordem dos credos aceitos. Em seu manual de Hist6ria da Bíblia, acha-se impresso em letras graúdas o conto segundo o qual a língua de Nestório lhe apodrecera na boca. Poderia haver maior amontoado de erros, num curto trecho, do que o parágrafo que traz a comparação do bispo, entre os métodos empregados pelos protestantes e os que os católicos romanos empregam, quando assevera que "para fazer conversos, o catolicismo sempre tem apelado para a razão; o protestantismo, como o maometismo, para a força e a violência. Na Inglaterra e na Escócia o protestantismo foi imposto ao povo por meio de multas, prisões e morte. Na América, os Puritanos agiram do mesmo modo. Entre os protestantes, há quase tantas religiões quantos são os indivíduos. A igreja está dividida e se reduz a pedaços, acabando em infidelidade e Mormonismo"?
Em matéria de liberdade de consciência e liberdade de pensamento, o protestantismo tem muito de que se arrepender e de que se retratar, em face da história que se abriu do século XVI para cá. Os princípios dos Reformadores deviam tê-los resguardado de todas as medidas legais de intolerância e de toda perseguição: Sua pr6pria afirmação do direito de dissentir, assim o pensamos hoje, devia ter-lhes sugerido aquela conduta. Sua aceitação das Escrituras como livro final de instrução, devia tê-los confirmado naquela atitude e os exemplos de dissidentes religiosos que os precederam e o trato que receberam das autoridades eclesiásticas, deviam, pensamos, estar sempre Perante seu espirito. Wyclif, seu verdadeiro precursor, havia afirmado a liberdade de pensamento contra os hierarcas de seu tempo, um dos quais, Gregório XI, disse que "da boca imunda de seu coração ele tem vomitado blasfêmias e heresias". Huss, a quem Lutero exaltava, havia dito que coisa alguma podia fazer contra as Escrituras e sua consciência. Ambos foram condenados por um Concilio Ecumênico, um a ser desenterrado, outro a sofrer morte horrível na fogueira. Em Worms, o próprio Lutero, em 1521 definiu o principio quando, em face de todas as autoridades do tempo, civis e eclesiásticas, exclamou: "A não ser que seja persuadido por argumentos suficientes, tirados da Escritura e da razão, não posso e não desejo retratar-me; porque fazer qualquer coisa contra a consciência é arriscado e perigoso". É possível que nenhuma verdade tenha sido mais clara e sinceramente enunciada, desde os dias dos Apóstolos. Palavras como aquelas nenhum Concilio Ecumênico ou teólogo medieval jamais pronunciou. Elas estão em frisante contraste com os pronunciamentos de Leão XIII e Pio X. O princípio de Lutero foi afirmado pelo oficial luterano na corte de Saxônia, Minkowitz, que, em face da tenaz oposição à causa protestante na Dieta de Spira, 1529, disse que, "em matéria de consciência, não pode haver lugar para maiorias. Em coisas que dizem respeito a honra de Deus e a salvação das almas, cada um deve responder por si mesmo". Esta e, observou Hase, precisamente a essência do Protestantismo. As palavras de Cristo: "A verdade vos libertará", são cumpridas, não por meio de coação física, mas por persuasão, tolerância e amor. Oh! Por que as autoridades da igreja dos séculos passados não seguiram sempre aquela política, política que pode ser tirada de S. Paulo quando aconselhava que, "se alguém for surpreendido em falta, vós, que sois espirituais, restaurai o tal num espirito de mansidão; e tu considera-te a ti mesmo, para que não sejas também tentado"! - Gl 6:1.
Somente use Bíblias traduzidas do Texto Tradicional (aquele perfeitamente preservado por Deus em ininterrupto uso por fieis): BKJ-1611 ou LTT (Bíblia Literal do Texto Tradicional, com notas para estudo) na bvloja.com.br. Ou ACF, da SBTB.