Por Dave Hunt
Uma das mais claras e mais efetivas estratégias de Satanás foi enganar o
imperador Constantino com uma falsa conversão. A influência desse evento único sobre
a história subsequente, no âmbito religioso e secular, é incalculável. Os
relatos diferem, se por meio de uma visão ou um sonho, como relatado por
Eusébio e Latâncio [1], Constantino viu uma “cruz” no céu e ouviu uma “voz”
proclamando (em alguns relatos as palavras estavam escritas na cruz), “sob
este símbolo tu deverás conquistar”. No ano anterior o deus Apolo também
prometeu a vitória a ele.
Os editos de tolerância de Constantino deram a todo homem “o direito de
escolher sua religião segundo os ditames de suas próprias consciência e
convicção honestas, sem compulsão e interferência do governo” [2]. A conversão
de Constantino na visão de Schaff foi um maravilhoso avanço para o
cristianismo: “a igreja ascende ao trono dos Césares sob a bandeira da cruz e
dá novo vigor e brilho ao venerável império de Roma” [3]. Na verdade, essa
“conversão” acelerou a corrupção da igreja por meio do seu casamento com o
mundo[4].
Como poderia um verdadeiro seguidor de Cristo, cujo reino não é deste mundo e
cujos servos não fazem guerra, ir para a guerra em Seu Nome? Claro, os Cruzados
fizeram o mesmo mais tarde, abatendo mulçumanos e judeus para retomar a “Terra
Santa” sob a garantia do papa Urbano II (correspondente à promessa de Maomé e
do Alcorão aos mulçumanos) de perdão total dos pecados para aqueles que
morressem nessa guerra santa (os mulçumanos chamam de Jihad).
Na verdade, os Cruzados, como todas as guerras dos papas, eram muito
agostinianas. A Cidade de Deus tinha que ser defendida!
Como Durant e outros historiadores destacaram, Constantino nunca renunciou sua
lealdade aos deuses pagãos. Ele não aboliu o altar de Vitória no Senado, nem o
altar da Virgem Vestal, que cuidava do fogo sagrado da deusa Vesta. O Deus‑sol,
não Cristo, continuou a ser honrado nas moedas imperiais. Apesar da “cruz” (na
verdade a cruz do deus Mitra) nos escudos e nas bandeiras militares,
Constantino tinha um medalhão em honra ao Sol pela “libertação” de Roma; e
quando ele proclamou um dia de descanso, foi novamente em nome do Deus‑sol
(“o dia celebrado para a veneração do sol” [5]), e não do Filho de Deus [6].
Durant nos lembra de que por toda a sua vida “cristã”, Constantino usou os
ritos pagãos bem como os ritos cristãos e continuou a depender das “fórmulas
mágicas pagãs para proteger lavouras e curar doenças” [7].
Que Constantino tenha assassinado aqueles que poderiam reivindicar seu trono,
incluindo o seu filho Crispus, um sobrinho e um cunhado é uma indicação
adicional de que sua “conversão” foi uma clara manobra política para unir o
império, como muitos historiadores concordam. O historiador Philip Hughes,
mesmo sendo um sacerdote católico, nos recorda que “em suas condutas, ele
[Constantino] permaneceu, até o fim, muito mais pagão do que no início. Seu
temperamento furioso, a crueldade que uma vez despertada não poupou nem mesmo a
vida de sua esposa e seu filho, são […] testemunhas desagradáveis da
imperfeição da sua conversão” [7].
Não muito após a nova tolerância, Constantino se viu diante de um problema que
ele nunca havia antecipado: divisão dentro da Igreja Cristã, para a qual ele
havia dado liberdade. Como nós notamos no último capítulo, essa divisão veio à
tona no Norte da África com os donatistas que, preocupados com a pureza da fé,
se separaram das igrejas oficiais estatais, rejeitaram suas ordenanças e
insistiram no rebatismo dos clérigos que se arrependeram após terem negado a fé
durante a perseguição que se levantou quando o imperador Diocleciano exigiu ser
adorado como um deus[0].
Após anos de esforços inúteis para reestabelecer a unidade por meio de
discussão, súplicas, concílios e decretos, Constantino finalmente recorreu à
força, Frend explica:
Na
primavera de 317, ele [Constantino] pôs em prática sua decisão ao publicar o
“mais severo” edito contra os donatistas, confiscando suas propriedades e
exilando seus líderes. Dentro de quatro anos, a liberdade universal de
consciênciaproclamada em Milão foi abrogada, e o Estado, mais uma vez, se
tornou um perseguidor, só que dessa vez em favor do cristianismo ortodoxo
[…]. [Os donatistas] nem entenderam nem se importavam com a conversão de
Constantino. Para eles, era um argumento do diabo insistir que “Cristo era um
amante da unidade” […]. Na visão deles, a hostilidade fundamental do
Estado com a [verdadeira] igreja não foi alterada. [10]
Em sua própria época e sua forma, Agostinho seguiu a conduta de Constantino em
seu tratamento dos donatistas, que ainda eram um espinho no corpo da Igreja
Romana. “Enquanto Agostinho e os católicos enfatizavam a unidade da Igreja, os
donatistas insistiam na pureza da Igreja e rebatizaram todos aqueles que vieram
a eles dos católicos — considerando os católicos corruptos” [11].
Constantino estava “inquieto [como estaria Agostinho e seu discípulo Calvino]
em sua perseguição aos ‘heréticos’ [proibindo] aqueles que estavam fora da
igreja católica a se reunirem […] e confiscando suas propriedades […]. As
mesmas coisas que os cristãos haviam sofrido, estava agora sendo praticado em
nome do cristianismo” [12].
Como um bom católico desfrutando a benção do imperador e crendo na igreja
estatal que Constantino estabeleceu, Agostinho perseguiu e até mesmo sancionou
a morte dos donatistas e de outros cismáticos, como nós já vimos. Gibbon nos
fala que a medida severa contra os donatistas “recebeu a aprovação fervorosa de
Santo Agostinho [e assim] grande parte foram reconciliados [forçados a voltar]
com a Igreja Católica” [13].
De Agostinho foi dito que “a própria grandeza de seu nome tem sido o meio de
perpetuar os erros mais grosseiros que ele mesmo propagou. Mais do que ninguém,
Agostinho encorajou a doutrina perniciosa da salvação pelos sacramentos de uma
igreja terrena institucional, que trouxe consigo rituais sacerdotais com todos
os males e as misérias que implicaram no decorrer dos séculos” [14].
De Agostinho a Calvino
Não há dúvida de que João Calvino ainda via a igreja de Cristo pelos olhos do
catolicismo romano. Ele viu a igreja (como Constantino a moldou e Agostinho a
cimentou) como uma parceira do Estado, que o Estado aplicava a ortodoxia (como
a igreja estatal a definia) sobre todos os seus cidadãos. Calvino aplicou sua
formação jurídica e seu zelo no desenvolvimento de um sistema de
cristianismo baseado numa visão extrema da soberania de Deus, que pela força
absoluta de sua lógica, obrigaria reis e toda a humanidade a conformar todos os
assuntos à justiça. Em parceria com a igreja, reis e outros governantes
imporiam o cristianismo calvinista.
Daqueles que creram em um reino milenar de Cristo na Terra, Calvino disse “a
ficção é muito pueril para precisar de refutação ou para merece‑la” [15].
Até onde Calvino podia afirmar, o reino de Cristo se iniciou com Sua vinda à
terra e está em processo desde então.
Rejeitando o reino futuro e literal de Cristo na terra por meio de Sua segunda
vinda, para estabelecer um reino terreno, sobre o trono de Davi em Jerusalém,
Calvino aparentemente se sentiu obrigado a estabelecer o reino por seus
próprios esforços na ausência de Cristo.
A Bíblia deixa claro que se deve “nascer de novo” para “ver o reino de Deus”
(João 3:3) e que “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus” (1 Coríntios
15:50). Ignorando essas verdades bíblicas e seguindo os erros de Agostinho,
Calvino estava determinado (juntamente com Guilherme Farel) a estabelecer o
Reino de Deus na terra em Genebra, Suíça.
Em 10 de novembro de 1536, a Confissão de Fé, que toda a burguesia e todos os
moradores de Genebra e súditos em seus territórios deveriam jurar aderir, e que
Farel tinha redigido consultando Calvino, foi apresentada à cidade
oficialmente. Era um longo documento com regras detalhadas cobrindo todas os
negócios da membresia da igreja, frequência, pregação, obediência do rebanho e
expulsão dos ofensores.
As autoridades de Genebra aprovaram o documento em 16 de janeiro de 1537. “Em
março, os anabatistas foram banidos. Em abril, sob a instigação de Calvino,
[uma inspeção casa a casa foi lançada] para garantir que os moradores de
Genebra abraçaram a Confissão de Fé […]. Em 30 de outubro, houve uma tentativa
de arrancar uma profissão de fé de todos os hesitantes. Finalmente, em 12 de
novembro, um edito foi emitido declarando que todos os recalcitrantes ‘[que]
não desejavam jurar à Reforma foram ordenados a deixar a cidade’ […]”[16].
“A
Reforma”? Houvera variações e diferenças entre várias facções quando a
Reforma brotou, de Lutero a Zuínglio. Mas em Genebra, somente o calvinismo
seria conhecido como “A Reforma” e “Teologia Reformada”. Essa reivindicação
presunçosa ainda é defendida pelos calvinistas de hoje em todo mundo.
A primeira tentativa de Calvino falhou. Boettner reconhece, “devido à tentativa
de Calvino e Farel de forçar um sistema tão severo de disciplina em Genebra,
foi necessário para eles deixarem a cidade temporariamente” [17].
Três anos depois, no entanto, frente à oposição católica de dentro e a ameaça
de intervenção armada pelos católicos romanos de fora, o conselho da cidade de
Genebra decidiu que eles precisavam das fortes medidas de Calvino e o
convidaram a voltar. Ele entrou na cidade em 13 de setembro de 1541. Dessa vez,
ele acabaria por conseguir impor sua versão da Reforma sobre os cidadãos de
Genebra com mão de ferro. Seu primeiro ato foi o de entregar ao conselho da
cidade suas Ordenanças Eclesiásticas, que foram
adotadas em 20 de novembro de 1541. Stefan Zweig nos diz:
Uma
das mais memoráveis experiências de todos os tempos se iniciou quando esse
homem magro e severo entrou no Portão Cornavian [de Genebra]. Um Estado [a
cidade‑estado murada de Genebra] estava para ser convertido
num
mecanismo rígido. Almas inumeráveis, pessoas com incontáveis sentimentos e
pensamentos, foram compactados em um sistema único e todo‑abrangente.
Essa
foi a primeira tentativa [protestante] de fazer uma imposição na Europa […],
uma subordinação uniforme sobre uma população inteira.
Com
uma sistemática meticulosa, Calvino começou a trabalhar para a realização de
seu plano de converter Genebra no primeiro Reino de Deus na terra. Era para ser
uma comunidade sem corrupção, desordem, vícios ou pecados; deveria ser a Nova
Jerusalém, um centro de onde a salvação do mundo radiaria […], toda a sua vida
foi devotada a serviço dessa única ideia. [18]
A intenção de Calvino de estabelecer um governo eclesiástico ocuparia a maior
parte do resto de sua vida. Embora reconhecendo a influência e o poder de
Calvino, o Pequeno Conselho dos Sessenta e o Grande Conselho dos Duzentos,
responsáveis pelas questões civis, resistiram ser assumidas por uma autoridade
religiosa (Consistório), à qual Calvino ascendeu. A luta pelo poder continuou
por anos, os conselhos até mesmo buscando reter o controle sobre algumas
disciplinas na igreja tais como as excomunhões, com Calvino se recusando a
ceder desafiadoramente.
Finalmente, em fevereiro de 1555, os partidários de Calvino ganharam a maioria
absoluta no Conselho. Em 16 de maio, houve uma tentativa de rebelião contra a
atitude de Calvino de expulsar certos oficiais libertários civis da Ceia do
Senhor[19]. Os líderes do motim que fugiram de Genebra para Bern foram
sentenciados a morte à revelia.
Quatro deles que não conseguiram escapar foram decapitados e esquartejados, e
partes de seus corpos foram pendurados em locais estratégicos como
advertência[20]. Evocando a frase “capangas de Satã” que ele usou anos antes
contra os anabatistas, Calvino justificou essa barbaridade: “aqueles que não
corrigem o mal quando podem fazer e seus ofícios requerem, são culpados” [21].
Desde o início em 1554 até sua morte em 1564, “ninguém mais ousava se opor ao
reformador abertamente” [22]. Os oponentes de Calvino foram silenciados,
expulsos ou fugiram para salvar as suas vidas. O “controle de Calvino da cidade
continuou sem enfraquecer”. Ele estava determinado a fazer de Genebra a base
para construir a Cidade de Deus de Agostinho em toda a parte. “Genebra se
tornou o símbolo e a encarnação de ‘outra’ Reforma […]”[23]. Mas que os
calvinistas de hoje alegam que era a Reforma.
Talvez Calvino pensasse que ele era o instrumento de Deus para forçar a Graça
Irresistível (uma doutrina‑chave no calvinismo) sobre os cidadãos de
Genebra, na Suíça — mesmo sobre aqueles que provaram sua indignidade,
resistindo à morte. Ele fez o seu melhor para impor a “justiça”
irresistivelmente, mas o que ele impôs e a maneira com que ele impôs estavam
longe da graça e dos ensinos e exemplos de Cristo.
Alguns daqueles que professam a fé “reformada” hoje, especialmente aqueles
conhecidos como reconstrucionistas, tais como os recentes Rousas J. Rushdoony,
Gary North, Jay Grimstead e outros (incluindo organizações como a Coalition on Revival), tomam
a Genebra de Calvino como modelo para eles e assim esperam cristianizar os
Estados Unidos e então o mundo. Muitos ativistas cristãos de menor apego a
Calvino esperam impor uma vida piedosa ao modo ímpio de viver estadunidense de
sua própria maneira, por meio de passeatas de protesto e organização de grandes
blocos de votação. Ninguém trabalhou tanto e por tanto tempo tentando fazer
isso do que Calvino.
Durant relata: Para regular a conduta leiga, um sistema de visitas domiciliares
foi estabelecido […]. E os ocupantes foram questionados sobre todos os aspectos
das suas vidas […]. A quantidade e as cores das roupas permitidas, o número de
pratos permitidos em uma refeição foram especificados por lei.
Joias
e rendas foram desaprovadas. Uma mulher foi presa por arranjar seu cabelo de
uma maneira imoral […].
Censura
de imprensa foi usada e ampliada a partir dos precedentes católicos e
seculares: livros […] com tendências imorais foram banidos […]. Falar
desrespeitosamente de Calvino ou do clero era crime. A primeira violação dessas
ordens era punida com uma advertência, violações posteriores com multas,
persistir na violação com prisão ou banimento da cidade. Fornicação era punida
com o exílio ou afogamento; adultério, blasfêmia ou idolatria com a morte […]
uma criança foi decapitada por agredir seus pais. Nos anos de 1558–1559 houve
414 processos por ofensas morais; entre 1542 e 1564 houve 76 banimentos e 58
execuções; a população de Genebra era na época de 20.000 pessoas. [24]
A opressão de Genebra não teria vindo sob a direção do Espírito Santo (“[…]
onde o Espírito do Senhor está, há liberdade” [2 Coríntios 3:17]), mas sim da
poderosa personalidade de Calvino e de uma visão extrema da soberania de Deus
que negou o livre‑arbítrio ao homem. Assim a “graça” tinha que ser
imposta irresistivelmente em uma tentativa não bíblica de infligir uma
“santidade” sobre os cidadãos de Genebra. Em contraste à humildade, à
misericórdia, ao amor, à compaixão, e à longanimidade de Cristo, a quem Ele
amou e tentou servir, Calvino exerceu autoridade como o papado que ele
desprezou. Além disso, ele criticou outros líderes protestantes por não fazer o
mesmo:
Visto
que os defensores do papado são tão amargos, ousados na representação de suas
superstições, que na sua fúria atroz eles derramam sangue de inocentes, isso
deveria envergonhar os magistrados cristãos que na proteção da verdade
autêntica, eles estão inteiramente destituídos do espírito. [25]
Os defensores de Calvino negam os fatos e tentam inocenta‑lo do que ele
fez, responsabilizando as autoridades civis. Boettner até mesmo insiste que
“Calvino foi o primeiro dos reformadores a exigir uma separação completa entre
a Igreja e o Estado” [26]. De fato, Calvino não somente estabeleceu a lei
eclesiástica, mas ele codificou a legislação civil[27]. Ele manteve as
autoridades civis para “promover e manter o culto externo a Deus, defender a sã
doutrina e a condição
da igreja” [28] e ver que “nenhuma idolatria, nem blasfêmia contra o nome de
Deus, nem calúnias contra a Sua verdade, nem outras ofensas à religião
surgissem e fossem disseminadas entre o povo […] [mas] para prevenir a
verdadeira religião […] de ser violada impune e abertamente, e de ser poluída
pela blasfêmia pública” [29].
Calvino utilizou a força civil para impor suas doutrinas particulares sobre os
cidadãos de Genebra e para aplicar tais doutrinas. Zweig, que se debruçou sobre
os relatos oficiais do Conselho da Cidade para o dia de Calvino, nos diz, “dificilmente haverá
um dia, nos relatos das definições do Conselho da Cidade, em que nós não
encontramos o comentário ‘é melhor consultar o mestre Calvino sobre isso’”[30].
Pike nos relembra que foi dada a Calvino uma “Cadeira do Consultor” em todos os
encontros das autoridades da cidade e “quando ele estava doente as autoridades
viriam à sua casa para as suas seções” [31]. Ao invés de diminuir com o tempo,
o poder de Calvino somente cresceu. John McNeil, um calvinista, admite que “nos
últimos anos de Calvino e sob sua influência, as leis de Genebra se tornaram
mais detalhadas e mais rigorosas” [32].
Com controle ditatorial sobre a população (“ele governou como poucos soberanos
fizeram” [33]), Calvino impôs o seu tipo de cristianismo sobre os cidadãos com
açoitamentos, prisões, banimentos e queimas na estaca. Calvino foi chamado de
“O Papa Protestante” e “O Ditador Genebrino” que “toleraria em Genebra as
opiniões de apenas uma pessoa, dele mesmo” [34]. Concernente à adoção de uma
confissão de fé em Genebra que foi feita obrigatória a todos os cidadãos, o
historiador Phillip Schaff comenta:
Era
uma incoerência flagrante que aqueles que tinham sacudido o jugo do papado como
um fardo intolerável submeteriam suas consciências e intelecto a um credo
humano; em outras palavras, substituir o antigo papado romano por um papado
moderno protestante. [35]
Durant diz que “Calvino manteve o poder como a cabeça do seu consistório; de
1541 até sua morte em 1564, sua voz foi a mais influente em Genebra” [36].
Vance nos lembra que:
Calvino
estava envolvido em cada aspecto imaginável da vida da cidade: regulamentos de
segurança para proteger as crianças, leis contra o recrutamento dos
mercenários, novas invenções, introdução do fabrico de tecidos, e até mesmo
dentistas. Ele era consultado não somente sobre todos os assuntos importantes
do Estado, mas sobre a supervisão dos mercados e a assistência aos pobres.[37]
Os esforços de Calvino com frequência eram louváveis, mas os assuntos de fé
foram legislados também. A confissão de fé trazida por Calvino era obrigatória
a todos os cidadãos. Era um crime a qualquer um discordar do papa protestante.
Durant comenta:
Todas
as reivindicações dos papas para a supremacia da igreja sobre o Estado foram
renovadas por Calvino para a sua igreja […] [Calvino] era tão rigoroso como
qualquer papa em rejeitar um individualismo de crença; esse grande legislador
do protestantismo repudiou completamente esse princípio de julgamento pessoal
com o que a nova religião começara […]. Em Genebra […] aqueles […] que não
podiam aceitar isso teriam que procurar outro lugar para morar. A ausência
persistente nos cultos protestantes [calvinista] ou uma recusa continuada a
tomar a Eucaristia era uma ofensa punível.
A
heresia se tornou de novo […] traição ao Estado e era punida com a morte […].
Em um ano, sob o conselho do Consistório, 14 possíveis bruxas foram enviadas à
estaca sob a acusação de que elas persuadiram Satã a afligir Genebra com a
praga. [38]
Calvino estava novamente seguindo os passos de Agostinho, que forçou a “unidade
[…] por meio da participação comum nos Sacramentos […]”[39]. Um médico chamado
Jerome Bolsec ousou discordar da doutrina da predestinação de Calvino. Ele foi
preso por dizer que “aquele que colocar um decreto eterno em Deus pelo qual Ele
ordenou alguns para a vida e o resto à morte faz de Deus um tirano […]”[40].
Bolsec foi preso e banido de Genebra com a advertência de que, se ele
retornasse, seria açoitado[41]. John Troillet, um tabelião da cidade, criticou a
visão de Calvino da predestinação por “fazer de Deus o autor do pecado” [42].
De fato, a acusação era verdadeira, como nós veremos nos capítulos 9 e 10. A
corte decretou que “daí por diante, ninguém ousaria falar contra esse livro [Institutas] e suas
doutrinas” [43].
Tão vã foi a prometida a liberdade de consciência que iria substituir a
opressão intolerável dos papas!
O poder de Calvino era tão grande que se opor era equivalente à traição contra
o Estado. Um cidadão chamado Jacques Gruet foi preso sob a suspeita de ter
colocado uma placa no púlpito de Calvino que dizia em parte, “Hipócrita
grosseiro…! Após o povo ter sofrido tanto eles se vingam a si mesmos […]
perceba que você não tem apoio como M. Verle [que foi morto] […]”[44].
Gruet foi torturado duas vezes por dia de uma maneira similar a que Roma, que
havia sido corretamente condenada pelos reformadores por aplicar tortura,
torturava as suas vítimas nas inquisições daqueles que foram acusados de ousar
discordar dos seus dogmas. O uso de torturas para “extrair” confissões foi
aprovado por Calvino[45].
Após trinta dias de sofrimento severo, Gruet finalmente confessou — se
verdadeiramente, ou em desespero para o fim das torturas, ninguém sabe. Em 16
de julho de 1547, “meio morto, ele foi preso à estaca, seus pés foram pregados
na estaca, e sua cabeça foi cortada” [46].
Decapitação era uma pena por crimes civis;
queimar na estaca era uma pena por heresia teológica.Aqui nós
vemos que uma desavença com Calvino era tratada como uma ofensa capital contra
oEstado.
Calvino seguiu os princípios de
punição, coerção e morte que Agostinho advogou. Em relação soente a um período
de pânico em face da praga e da fome, Cottret descreve “uma determinação
irracional para punir os fomentadores do mal”. Ele fala de um homem que “morreu
sob tortura em fevereiro de 1545, sem admitir os seus crimes […] o corpo foi
arrastado ao meio da cidade, a fim de não privar os habitantes da queima a que
eles tinham direito. Feiticeiros, como os heréticos […], foram caracterizados
pelo combustível de suas qualidades […]. As execuções continuaram. Já aqueles
detidos que recusavam confessar; as torturas foram combinadas habilmente para
evitar matar o culpado de forma tola […], [alguns] foram decapitados […],
alguns cometeram suicídio em suas celas para evitar a tortura […], uma mulher
presa se jogou pela janela […]. Sete homens e vinte e quatro mulheres morreram
nesse caso; outros fugiram” [47].
Em uma carta, Calvino aconselhou a um amigo: “o Senhor nos testa
de uma maneira surpreendente. Uma conspiração foi descoberta de homens e
mulheres que por três anos se empenharam em espalhar a praga na cidade por meio
da feitiçaria […]. Quinze mulheres já foram queimadas e os homens foram punidos
ainda mais rigorosamente. Vinte e cinco desses criminosos ainda estão na
prisão […]. Até agora Deus tem preservado a nossa casa”.
Cottret continua: “Calvino, portanto, compartilha em todos os aspectos, as
fantasias de suas comitivas. Ele encontrou ocasião para exortar os seus
contemporâneos a perseguir os feiticeiros, a fim de ‘extirpar tal raça’ […]. Um
par desses capangas de Satã foram queimados no mês anterior […]”[48]. Calvino
até mesmo acreditou que o diabo, pelo menos em uma ocasião, ajudou a eliminar o
mal de Genebra, “pois em outubro de 1546 ele [o diabo] arribou ao
ar (conforme o que testifica o próprio Calvino) um homem que estava doente
com a praga e que era conhecido por sua má conduta e impiedade” [49].
Ninguém jamais teve tanto êxito
em uma imposição totalitária da “piedade” sobre uma sociedade completa quanto
João Calvino. E, portanto, ninguém provou como ele com clareza que a coerção
não pode ser bem sucedida, porque ela nunca pode mudar os corações dos
homens. A teologia de Calvino, como definida em suas Institutas, negou
que o homem não regenerado pudesse crer e obedecer a Deus. Aparentemente, ele
era ignorante quanto ao fato do senso comum de que uma escolha genuína é
essencial se o homem quer amar e obedecer a Deus ou mostrar uma compaixão real
aos seus companheiros. Mas por seus resolutos esforços de fazer os cidadãos de
Genebra obedecerem, Calvino refutou suas próprias teorias de Eleição
Incondicional e Graça Irresistível.
Aparentemente, o que ele provou, por anos de intimidação e força totalitária,
foi o primeiro dos cinco pontos do calvinismo, a Depravação Total. Por mais que
ele tentasse, existiram muitos que ele simplesmente não poderia persuadir a
viver como ele decretou, não importa quão severa fosse a pena por falhar em
fazer o que se ordenava.
Ele conseguiu criar muitos hipócritas externamente conformados às leis enquanto
as autoridades estavam olhando, mas em seus corações almejavam e praticavam,
quando possível, os mesmos velhos pecados do passado.
Sim, existiram relatos de visitantes que “maldições e blasfêmias, imoralidade,
sacrilégio, adultério e vida impura”, tais como encontrados em todos os lugares
estavam ausentes em Genebra[50]. Claro, John Knox estava entusiasmado. Ele
chamou Genebra de “a mais perfeita escola de Cristo na terra desde os dias dos
Apóstolos” [51]. Um visitante, ministro luterano que pensava que a coerção de
Calvino era recomendável, escreveu em 1610, “quando eu estava em Genebra,
observei algo grandioso de que eu me lembrarei e desejarei enquanto eu viver”.
Ele elogiou as “investigações semanais da conduta e até mesmo as menores das
transgressões dos cidadãos” e concluiu, “se não fosse pela diferença de
religião, eu ficaria preso a Genebra para sempre” [52].
Diferença
de religião? Sim, o calvinismo não era o luteranismo, embora ambos
perseguissem os anabatistas. O protestantismo envolvia várias facções rivais,
para não mencionar milhões de verdadeiros cristãos que nunca obedeceram à Roma
e assim nunca saíram dela como “protestantes”. Multidões incalculáveis desses
crentes foram martirizados pelos católicos romanos sob a instigação de
numerosos papas por mil anos antes de Lutero e Calvino terem nascido.
Assim, a representação de hoje do calvinismo como “teologia reformada” que
supostamente reviveu o verdadeiro cristianismo é grosseiramente imprecisa.
Admiradores de João Calvino citam histórias favoráveis como prova da influência
piedosa dele e suas teorias exerceram na transformação de uma sociedade ímpia
em uma que honrava a Deus. Seus métodos, no entanto, frequentemente longe de
estarem de acordo com Cristo, não poderia ser justificada por quaisquer resultados.
Nem poderiam os meios de Calvino, como nós já temos notado, ser justificados
pelo fato de que torturas, prisões e execuções foram em pregados por Lutero, os
papas e outros clérigos católicos romanos para forçar suas visões religiosas
sobre aqueles debaixo de seu poder.
Um verdadeiro seguidor de Cristo não se pode conformar com esse mundo, mas
seguir o exemplo de Cristo em seu comportamento, independente em que cultura ou
tempo da história ele se encontre.
Os seguidores de Calvino se vangloriam de que ele era o maior dos exegetas, que
obedeceu às Escrituras meticulosamente tanto ao formular sua teologia, quanto
ao guiar sua vida. Calvino supostamente “se dispôs nitidamente a romper com a
tradição onde ela era contrária a Palavra de Deus” [53]. Ao mesmo tempo, ele é
defendido com a desculpa de que estava somente em conformidade com as tradições
estabelecidas a muito tempo por Roma, que se iniciaram com Constantino.
Otto Scott diz, “nos primeiros anos da Reforma, a censura dos costumes e morais
permaneceram estabelecidas, e aceita foi parte dos regulamentos antigos,
existentes não somente em Genebra, mas em toda a Europa” [54].
Isso é verdade. Tais restrições desencorajaram tentativas de rebeliões de sair
do papel, etc. Mas esse não era o cristianismo ensinado e exemplificado por
Cristo e seus Apóstolos.
Não há maneira alguma de defender a conduta de Calvino com a Escritura. Sim,
ele amava e cuidava daqueles que concordavam com ele. Sim, ele despendeu a si
mesmo e encurtou sua vida visitando os doentes, cuidando do rebanho, e pregando
continuamente. Mas em seu tratamento daqueles que discordavam dele, ele não
seguiu, mas violou os ensinos e os exemplos de Cristo e dos Apóstolos.
A Inutilidade da “Piedade” Imposta Lamentavelmente, a despeito das ameaças e
torturas, a Genebra de Calvino não era uma cidade santa, como as histórias
otimistas selecionadas parecem indicar. Os relatos do Conselho de Genebra que
sobreviveram desvendam uma cidade mais parecida ao resto do mundo do que os
admiradores de Calvino gostam de admitir. Esses documentos revelam “um alto
percentual de filhos ilegítimos, crianças abandonadas, casamentos forçados e
sentenças de morte” [55]. A enteada e o genro de Calvino estavam entre os
muitos condenados por adultério[56].
Calvino fez o seu melhor, mas falhou. Ele não foi capaz de produzir entre os
pecadores a sociedade ideal — a Cidade de Deus de Agostinho — que ele
vislumbrara quando ele escreveu suas Institutas. Os
calvinistas ensinam que o não salvo, o totalmente depravado pode responder a
Deus somente em descrença, rebelião e
oposição. White explica: “o homem não regenerado, que é inimigo de Deus, deve,
indubitavelmente, responder a Deus de uma maneira universalmente negativa”
[57]. Esse sendo o caso, por sua própria teoria, os esforços de Calvino em
Genebra estavam fadados ao fracasso antes de se iniciarem!
Falando pela maioria dos calvinistas, R. C. Sproul explica que segundo a “visão
reformada da predestinação, antes da pessoa poder escolher a Cristo, ela deve
nascer de novo” [58]. Por um ato soberano de Deus. Como Calvino poderia ter
certeza de que Deus fez esse trabalho no coração de todos em Genebra? Se Deus
não predestinou cada cidadão de Genebra à salvação, então Calvino estava errado
em tentar força-los aos moldes cristãos. Apesar disso, a coerção até mesmo com
o uso da força era uma parte integral do sistema praticado por Calvino e seus
sucessores imediatos.
Se os calvinistas de hoje não aprovam tais condutas, não pode o calvinismo que
produziu tal tirania também estar errado em outros aspectos?
Quantos dos “eleitos” estavam lá em Genebra? Como Jay Adams destaca, ninguém,
nem mesmo Calvino saberia. O calvinismo não tem explicação alguma de como o
eleito poderia ser identificado com certeza entre os hipócritas que agiram como
se estivessem entre os eleitos pelo seu comportamento, mas assim fizeram apenas
por medo das consequências temporais. Não importa o quanto Calvino tentasse, se
Deus (segundo a doutrina de Calvino) não elegeu todos os cidadãos de Genebra à
salvação (e Ele aparentemente não elegeu), então o mal ainda persistiria —
embora não como ostensivamente em outras cidades daqueles dias.
Questiona-se, considerando o registro do insucesso abismal de Calvino, por que
os reconstrucionistas de hoje, que abraçam o mesmo dogma, creem que serão
capazes de impor vida piedosa sobre nações inteiras — ou porque os evangélicos
continuam a elogiar Calvino, o opressor de Genebra.
Nascido Miguel Serveto em Villanova em 1511, o homem conhecido pelo mundo como
aquele que “descobriu a circulação pulmonar do sangue — a passagem do sangue da
câmara direita do coração pela artéria pulmonar, para e através dos pulmões,
sua purificação pela oxigenação, e seu retorno pela veia pulmonar para a câmara
esquerda do coração”. Ele era de alguma maneira “um pouco mais insano do que a
média em seu tempo”, anunciando o fim do mundo em que “o Arcanjo Miguel
lideraria uma guerra santa contra ambos anticristos, o papal e o genebrino”
[59].
Inquestionavelmente, ele estava na classificação de um herege, cujos delírios a
respeito de Cristo refletiam uma combinação de islamismo e judaísmo, que o
intrigavam. No entanto, ele estava certo sobre algumas coisas: que Deus não
predestina almas ao inferno e que Deus é amor. Suas outras ideias ultrajantes
poderiam ter passado despercebidas se ele não as publicasse e não as tentasse
forçar sobre Calvino e seus companheiros, ministros em Genebra, com discursos
agressivos, desdenhosos e blasfemos. Esse Servetus intitulou uma de suas obras
publicadas de A Restituição do Cristianismo, o que só poderia ser
tomado como uma afronta pessoal e intencional ao autor das Institutas da
Religião Cristã.
Servetus escreveu pelo menos trinta cartas insistentes a Calvino, o que deve
ter irritado grandemente este último. Em 13 de fevereiro de 1546, Calvino
escreveu a Farel, “Servetus me enviou um longo volume de seus delírios. Se eu consentir,
ele virá aqui, mas eu dou minha palavra que, se ele vier, se minha autoridade
tem qualquer peso, eu não o deixarei sair vivo” [60]. Servetus cometeu o erro
de passar por Genebra sete anos depois em sua ida a Nápoles e foi reconhecido
quando foi à igreja (possivelmente com medo de ser preso por não ir) por alguém
que o viu apesar de seu disfarce e o relatou a Calvino, que por sua vez ordenou
sua prisão.
No início do julgamento, que durou dois meses, Calvino escreveu a Farel,
“espero que a sentença seja a pena de morte” [61]. Obviamente, se o Deus que se
acredita crer que predestina bilhões ao inferno ardente (todos que Ele poderia
salvar), então, queimar na estaca um herético totalmente depravado pareceria
completamente ameno e facilmente justificável. No entanto, essa lógica, de
certa maneira, parece escapar de muitos cristãos evangélicos de hoje que
admiram o homem e chamam a si mesmos de calvinistas.
A queixa, trazida por Calvino o detrator, continha trinta e oito acusações
amparadas por citações dos escritos de Servetus. Calvino apareceu pessoalmente
na corte como o acusador e como “testemunha principal da acusação” [62]. Os
relatos pessoais de Calvino do julgamento se equipararam às injúrias de
Servetus, com epítetos nada cristãos, tais como “o cão sujo limpou o focinho
[…] o pérfido patife suja cada página com ímpios delírios”, etc[63].
O Conselho de Genebra consultou as outras igrejas da Suíça protestante, e seis
semanas depois a resposta delas foi recebida: Servetus deveria ser condenado,
mas não executado. Contudo, sob a liderança de Calvino, ele foi sentenciado à
morte sob duas acusações de heresia: unitarismo (rejeição da Trindade) e
rejeição do batismo infantil. Durant nos dá os detalhes horripilantes:
Ele
pediu para ser decapitado, ao invés de queimado; Calvino estava inclinado a
apoiar esse apelo, mas o ancião Farel […] o reprovou por tal tolerância; e o
Conselho votou que Servetus seria queimado vivo.
A
sentença foi executada na manhã seguinte, em 17 de outubro de 1553 […] no
caminho [para a queima] Farel importunou Servetus a receber o favor divino
confessando os seus crimes por heresia; segundo Farel, o homem
condenado respondeu, “eu não sou culpado, eu não mereci a morte”; e ele
rogou a Deus o perdão de seus acusadores. Ele foi preso à estaca com
correntes de ferro, e seu último livro foi amarrado ao seu lado. Quando as
chamas alcançaram sua face, ele gritou em agonia. Após meia hora queimando, ele
morreu. [64]
Calvino acusou Servetus de “argumento enganoso” contra o batismo infantil. Mas
as últimas principais objeções (a despeito de suas outras faltas) foram na
verdade mero barulho. A resposta irrisória de Calvino, de que ele seria
purificado desse anticristão “tom mordaz ridículo e zombador que nunca o
deixaria” [65] é condensada como segue:
Servetus
[argumenta] que nenhum homem se torna nosso irmão a não ser pelo Espírito de
adoção […] somente conferido pelo ouvir da fé […]. Quem presumirá […] que
[Deus] não pode enxertar as crianças em Cristo por algum outro método secreto
[…]? Novamente ele objeta que as crianças não podem ser […] nascidas pela
palavra. Mas o que eu tenho dito de novo e de novo e agora repito [é] […] Deus
usa Seus próprios métodos para regenerar […], consagrar crianças a Si mesmo e
inicia–las por um símbolo sagrado […]. A Circuncisão era comum às crianças
antes de elas receberem o entendimento […]. Sem dúvida o projeto de Satã em
atacar o pedobatismo com todas as suas forças é de […] apagar essa atestação da
graça divina […], que desde o nascimento elas tem sido […] reconhecidas por Ele
como Seus filhos […].[66]
Apesar de suas outras falsas visões, Servetus estava correto em suas objeções
ao batismo infantil e foi, portanto, nesse respeito, queimado na estaca por uma
crença bíblica que se opôs à heresia de Calvino da regeneração batismal de
crianças, praticada em muitas igrejas calvinistas nos dias de hoje.
Muitas tentativas foram feitas por seus seguidores modernos de absolver Calvino
da morte cruel e inescrupulosa de Miguel Servetus. É dito que Calvino o visitou
na prisão e pediu para ele se retratar. Ao mesmo tempo, a disposição para que
Servetus fosse decapitado ao invés de queimado na estaca, não foi
necessariamente motivada por benevolência, mas uma tentativa de transferir a
responsabilidade à autoridade civil. Decapitação era a pena para crimes civis;
queimar na estaca era por heresia. As acusações, no entanto, claramente foram
teológicas, não civis, e foram trazidas pelo próprio Calvino.
Sem dúvida alguma, a autoridade civil só agia sob o comando da igreja. Segundo
as leis de Genebra, Servetus, como um viajante de passagem, deveria ter sido
expulso da cidade, não executado. Foi somente sua heresia que o condenou — e
somente porque Calvino pressionou as acusações. Calvino fez exatamente o que
sua visão de Deus requeria, mantendo o que ele escreveu a Farel sete anos
antes.
Aqui novamente, sobre os ombros de Calvino, nós vemos a longa sombra de
Agostinho. Para justificar as suas ações, Calvino tomou emprestada a mesma
interpretação pervertida de Lucas 14:23 que Agostinho usou. Frend disse,
“raramente às palavras dos evangelhos são dadas um significado tão inesperado”
[67]. Farrar escreve:
A ele [Agostinho] se deve […], sobretudo, o espírito amargo de ódio teológico e
perseguição. Seus escritos se tornaram a Bíblia da Inquisição. Seu nome foi
aduzido — e poderia haver uma Nêmesis mais terrível em seus erros? —
para justificar a morte de Servetus. [68]
Houve grande aclamação dos católicos e protestantes juntos pela queima de
Servetus. A Inquisição em Viena queimou a sua efígie. Melâncton escreveu uma
carta a Calvino em que ele chamou a queima de “um piedoso e memorável exemplo
para toda a posteridade” e deu “graças ao Filho de Deus” pela justa “punição
desse homem blasfemo”. No entanto, outros discordaram e Calvino se tornou alvo
de críticas.
Muitos que viviam nos tempos de Calvino reconheceram a perversidade de usar a
força para promover o “cristianismo”. A total aprovação não existiu até mesmo
dos amigos íntimos de Calvino[69]. Repreendendo Calvino pela queima de
Servetus, o chanceler Nicolau Zurkinden, um magistrado, disse que a espada era
inapropriada para forçar a fé[70]. Apesar de muitas repreensões, Calvino
insistiu que a espada civil deveria manter a fé pura. Sua conduta estava
alinhada à sua rejeição do amor de Deus por todos e sua negação da escolha
humana para crer no evangelho.
Alguns críticos argumentaram que a queima de Servetus somente encorajaria os
católicos romanos da França a fazerem o mesmo aos huguenotes (70.000 foram
abatidos em uma noite em 1572). Atingido por tal oposição, em fevereiro de
1554, Calvino publicou um pesado ataque destinado aos seus críticos:Defensio orthodoxae
fidei de sacra Trinitate contra prodigiosos errores Michaelis Serveti. Ele
argumentou que todos aqueles que se opõem à verdade de Deus são piores do que
os assassinos, porque assassinar mata meramente o corpo, enquanto a heresia
condena a alma por toda a eternidade (isso era pior do que a predestinação
de Deus à condenação eterna?), e que Deus instruiu explicitamente os cristãos a
matarem os heréticos e até mesmo ferirem com a espada qualquer cidade que
abandonou a verdadeira fé:
Quem defender que é errado o que é feito aos heréticos e blasfemadores,
punindo-os [com a morte], torna-se cúmplice de seus crimes […]. É Deus quem
fala, e está claro qual lei Ele teria mantido na Igreja até o fim do mundo […]
de modo que não poupamos nem domésticos, nem parentes de qualquer um, e
esquecemos toda a humanidade quando o assunto é combater para a Sua glória.
[71]
O historiador R. Tudor Jones declara que esse tratado que Calvino escreveu em
defesa da queima de Servetus, “é Calvino no seu comportamento mais frio […] tão
assustador em suas maneiras quanto o trato de Lutero contra os camponeses
rebelados” [72]. Oito anos depois, Calvino ainda estava se defendendo contra as
críticas e ainda estava defendendo a queima de hereges. Em uma carta de 1561 ao
Marquês de Poet, alto Mordomo do Reino de Navarra, Calvino
aconselha severamente:
Não falhe em livrar o país desses canalhas zelosos que agitam o povo a se
revoltar contra nós. Tais monstros deveriam ser exterminados, como eu
exterminei Michael Servetus o espanhol. [73]
Um ano depois (somente dois anos antes de sua morte), Calvino justificou de
novo a morte de Servetus, enquanto que ao mesmo tempo reconhecendo que ele era
o responsável: “e que crime foi o meu se o nosso Conselho, sob minha
exortação […], se vingou de suas blasfêmias execráveis (ênfase
adicionada)?” [74]
Os calvinistas de hoje ainda persistem em oferecer uma desculpa após outra para
inocentar seu herói. Contudo, até mesmo um calvinista fiel como William
Cunningham escreve:
Não existe qualquer dúvida que Calvino antes, durante e após o evento aprovou
explicitamente e defendeu leva-lo [Servetus] à morte, e assumiu a
responsabilidade pelo negócio.[75]
Os apoiadores de Calvino de hoje se queixam que “nenhum líder Cristão jamais tem
sido, com tanta frequência, condenado por tantos. E o fundamento usual para a
condenação é a execução de Servetus e a doutrina da predestinação” [76].
De fato, Servetus foi apenas uma das muitas vítimas do calvinismo quando levado
às suas conclusões lógicas. Os defensores geralmente pleiteiam que o que
Calvino fez era uma prática comum e que ele deveria ser julgado conforme o
padrão de ser tempo. Ser “novas criaturas em Cristo” para não ir além do que as
convenções de suas culturas e de seus momentos na história? Certamente não!
A soberania de Deus em controlar e causar todas as coisas que ocorrem é o
coração do calvinismo. O fiel calvinista C. Gregg Singer declara que “o segredo
da grandiosidade da teologia de Calvino está em seu entendimento do ensino
bíblico da soberania de Deus” [77]. Calvino verdadeiramente poderia ter
acreditado que ele era o instrumento escolhido de Deus desde a eternidade
passada para coagir, torturar e matar, a fim de forçar os cidadãos de Genebra
ao comportamento que Deus predestinou ecausou?
Calvino tem sido aclamado como um exemplo piedoso, que baseou suas ações e
teologia unicamente na Escritura. Mas, muito do que ele fez não era bíblico e
era extremo, embora consistente com sua teologia. Não é esse fato razão
suficiente para examinar o calvinismo cuidadosamente, a partir das Escrituras?
Que o papa e Lutero se juntaram em uma aliança profana com o governo civil para
aprisionar, açoitar, torturar e matar dissidentes em nome de Cristo não
justifica Calvino. Não é possível que algo da teologia de Calvino era
antibíblico, assim como os princípios que guiaram sua conduta? William Jones
declara:
E com respeito a Calvino, é manifesto que a mais evidente e, pelo menos para
mim, a mais odiosa característica em todo o multiforme caráter papal se viu
nele ao longo da vida — quero dizer o espírito de perseguição. [78]
Não é somente Cristo o padrão de seus seguidores? E Ele não é sempre o mesmo,
impossível de ser mudado pelo tempo ou pela cultura? Como os papas podem ser
condenados (e certamente são) pelo mal que eles fizeram sob a bandeira da cruz,
enquanto Calvino é escusado fazendo o mesmo, embora em uma escala menor? As
seguintes são somente duas passagens, entre muitas que condenam Calvino:
Mas a
sabedoria que do alto vem é, primeiramente, pura, depois pacífica, moderada,
tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem
hipocrisia. (Tiago 3:17)
Aquele que diz que está Nele, também deve andar como Ele [Cristo] andou. (1 João
2:6)
Eu
me pergunto como tantos líderes cristãos de hoje podem continuar a elogiar um
homem cujo comportamento foi muitas vezes tão distante dos exemplos bíblicos
refletidos acima.
Fonte:
HUNT, Dave. Que amor é este?; Tradução Cloves Rocha dos
Santos e Walson Sales da Silva. 1. Edição – São Paulo:
Editora Reflexão 2015. Cap 5.
__________________________
Notas:
[1] W. H. C. Frend, The Rise Christianity (Philadelphia, PA: Fortpress Press,
1984), 482.
[2]Phillip Schaff, History of the Christian Church (New York: Charles
Scribner’s Sons, 1910; Vm. B. Eerdmans Publishing Company, reprint 1959), II:
72-73.
[3]Ibid.
[4] F. F. Bruce, Light in the West, Bk, III of The Spreading Flame (Grand
Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Co., 1956), 11-13.
[5]Codex Theodosianus, (July 3, A.D. 321), XVI: 8.1.
[6]Frend, Rise, 484.
[7] Will Durant, “Caesar and Christ,” Pt. III of The History of Civilization
(New York: Simon and Schuster, 1950), 656.
[8]Philip Hughes, A History of the Church (London, 1934), 1:198.
[9] E. H. Broadbent, The Pilgrim Church (Port Colborne, ON: Gospel Folio Press,
reprint 1999), 38-39.
[10]Frend, Rise, 492.
[11]John Laurence Moshein, An Ecclesiastical History, Ancient and Modern,
Trans. Archibald Maclaine (Cincinnati: Applegate and Co., 1854), 101; and many
other historians.
[12]Laurence M. Vance, The Other Side of Calvinism (Pensacola, FL: Vance
Publications, rev. ed. 1999), 45.
[13]Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire (New
York: Modern Library, n.d.), 2:233.
[14]John W. Kennedy, The Torch of the Testimony (Christian Books Publishing
House, 1963), 68.
[15] John Calvin, Institutes of the Christian Religion, trans Henry Beveridge
(Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1998 ed.), III:xxv, 5.
[16] Bernard Cottret, Calvin: A Biography (Grand Rapids, MI: William B.
Eerdmans Publishing Company, 2000), 128-130.
[17]Loraine Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination (Phillipsburg,
NJ: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1932), 408.
[18]Stefan Zweig, Eden Paul and Cedar Paul, trans., The Right to Heresy
(London: Cassel and Company, 1936), 57; Cited in Henry R. Pike, The Other of
John Calvin (Head to Heart, n.d), 21-22.
[19]Francois Wendel, Calvin: Origins and Development of His Religious Thought
(Grand Rapids, MI: Baker Books, 1997), 98-101; Cottret, Calvin, 195-198.
[20]Wendel, Calvin, 100; Cottret, Calvin, 198-200.
[21]Cottret, Calvin, 200.
[22]RogetAmédée, L’égliseetl’État a Genèvedutemps de Calvin.
Étuded’histoirepolirico-ecclésiastique(Geneva: J. Jullien, 1867).
[23] Bernard Cottret, Calvin: A Biography, tr. M. Wallace McDonald (Grand
Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 2000) 250.
[24]Durant, Civilization, III: 474.
[25]George Park Fisher, The Reformation (New York: Scribner, Armstrong and Co.,
1873), 224.
[26]Boettner, Reformed, 410.
[27]Ronald S. Wallace, Calvin, Geneva, and the Reformation (Grand Rapids, MI:
Baker Book House, 1990), 29.
[28]Calvin, Institutes, IV: xx, 2.
[29]Ibid., 3.
[30] Zweig, Eramus, 127.
[31]Pike, John Calvin, 26.
[32]John T. McNeil, The History and Character of Calvinism (Oxford: Oxford
University Press, 1966), 189.
[33]Williston Walker, John Calvin: The Organizer of Reformed Protestantism (New
York: Schocken Books, 1969), 259.
[34]Walker, Organizer, 107.
[35]Schaff, History, 8: 357.
[36] Durant, Civilization, VI: 473.
[37] Vance, Other Side, 85.
[38] Durant, Civilization, IV: 465.
[39]Frend, Rise, 669.
[40]The Register of the Company of Pastors of Geneva in the Time of Calvin,
trans. And ed. Phillip E. Hughes (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing
Co., 1966), 137-38; cited in Vance, Other Side, 84.
[41]Schaff, History, 8:618.
[42] G.R. Potter and M. Greengrass, John Calvin (New York: St. Martin’s Press,
1983), 92-93.
[43]Register of Geneva, Cited in Vance, Other Side, 201.
[44]Schaff, History, 502.
[45] Fisher, Reformation, 222.
[46] J.M. Robertson, Short History of Freethought(London, 1914), I: 443-44.
[47]Cottret, Biography, 180-181.
[48]Ibib.
[49]Wendel, Calvin, 85.
[50]Schaff, History, 644.
[51] Bard Thompson, Humanists and Reformers: A History of the Renaissance and
Reformation (Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Co., 1996), 501.
[52]Schaff, History, 519.
[53] C. Gregg Singer, John Calvin: His Roots and Fruits (Abingdon Press, 1989),
19.
[54] Otto Scott, The Great Christian Revolution (Windsor, NY: The Reformer
Library, 1994), 46.
[55] Charles Beard The Reformation of the Sixteenth Century in Relation to
Modern Thought and Knowledge (London, 1885), 353; also see Edwin Muir, John
Knox (London, 1920), 108.
[56] Preserved Smith, The Age of the Reformation (New York, 1920), 174.
[57]James R. White, The Potter’s Freedom (Amityville, NY: Calvary Press
Publishing, 2000), 98.
[58] R. C. Sproul, Chosen By God (Carol Stream, IL: Tyndale House Publishers, inc.,
1986), 72.
[59] Durant, Civilization, VI: 481.
[60] Rolando Bainton, Hunted Heretic: The Life of Michael Servetus (Boston: The
Beacon Press, 1953), 144; cited in Durant, Civilization, VI:481. See also John
Calvin, The Letters of John Calvin (Carlisle, PA: The Banner of Truth Trust,
1980), 159.
[61]John Calvin, dated August 20, 1553; quoted in Calvin, Letters.
[62]Wallace, Calvin, Geneva, 77.
[63] Durant, Civilization, VI:483.
[64] Ibid, 484.
[65]Cottret, Biography, 78.
[66] Calvin, Institutes, IV: xvi, 31.
[67]Frend, Rise, 672.
[68]Frederic W. Farrar, History of Interpretation (New York: E. P. Dutton and
Co., 1886), 235-38.
[69]Ferdinand Buisson, SebastienCastellion, Sa Vie son oeuvre (1515-1563)
(Paris: Hachette, 1892), I: 354.
[70] Letter from N. Zurkinden to Calvin, February 10, 1554, cited in Cottret,
227.
[71]J. W. Allen, History of Political Thought in the Sixteenth Century (London,
1951), 87.
[72] R. Tudor Jones, The Great Reformation (Downer’s Grove, IL: InterVarsity
Press, n.d.), 140.
[73]John Calvin to the Marquis de Poet, in The Works of Voltaire (Chicago: E.R.
Dumont, 1901), 4: 89; quoted in Vance, Other Side, 95, who gives two other
sources for this quote.
[74]Schaff, History, 8: 690-91.
[75] William Cunningham, The Reformed and the Theology of the Reformation
(Carlisle, PA: The Banner of Truth Trust, 1967), 316-17.
[76] Scott, Revolution, 100.
[77]Singer, Roots, 32.
[78]William Jones, The History of the Christian Church (Church History Research
and Archives, 5th ed. 1983), 2: 238.
https://estudos.gospelprime.com.br/o-lado-b-do-calvinismo-em-genebra/
Somente use Bíblias traduzidas do Texto Tradicional (aquele perfeitamente preservado por Deus em ininterrupto uso por fieis): BKJ-1611 ou LTT (Bíblia Literal do Texto Tradicional, com notas para estudo) na bvloja.com.br. Ou ACF, da SBTB.