Maldição hereditária, quebra de maldição, maldição do nome e
congêneres são expressões de um modismo teológico: bênção e maldição.
Conversei com alguns adeptos deste pensamento, li dois livros e artigos
sobre o assunto. Surpreendi-me com o uso fragmentário e inadequado da
Bíblia e com os conceitos tão radicais e tão frágeis.
Um dos livros
mais difundidos sobre o assunto, talvez pelo tamanho, pequeno, e fácil de
ler, é Bênção e Maldição, de Jorge Linhares . Sobre ele, respeitosamente,
desejo alinhavar algumas idéias. Não pretendo desancar o autor, que tem
seu espaço no reino de Deus e deve ser um servo útil. Não desejo invalidar
sua vida cristã, mas analisar algumas idéias que ele expende, e que
vasaram do seu âmbito para o nosso arraial.
"Maldição é a
autorização dada ao diabo por alguém que exerce autoridade sobre outrem,
para causar dano à vida do amaldiçoado". Esta é a definição encontrada no
livro (p. 16). Uma definição precisa ser sustentável. Deve ser coerente,
concisa e resistir a análise. De onde veio esta? O Diabo precisa de
autorização humana para causar dano a alguém? No livro, o autor mostra
pessoas que não tinham autoridade sobre uma terceira, amaldiçoando-a.
Esposas que não tinham autoridade sobre os marido, amaldiçoam-nos (ps. 10
e 26) e acontece o que foi dito.
Há maldições do próprio Deus
(particularmente Deuteronômio 28.15 em diante). Deus não está dando uma
autorização ao Diabo, mas julgando alguém. A ação é dele. Basta ler o
texto bíblico.
Boa parte da argumentação do livro repousa sobre
experiências. Isto é um perigo. Alegar que um rapaz é homossexual porque
seu pai o amaldiçoou, chamando-o de "mulherzinha" (p. 29) pode fazer o
deleite de alguns psicólogos, mas tira toda a responsabilidade pessoal do
jovem. Houve uma opção. Colocar a culpa de nossos atos errados e de nossas
escolhas mal feitas em palavras ditas por alguém é cair na
irresponsabilidade moral. Tomamos decisões, somos responsáveis pelo que
fazemos. A culpa é nossa. Quando acertamos, o mérito é nosso. Há valor
moral no que fizemos.
Muitos dos casos alistados no livro nada
provam. São genéricos e, na estrutura da argumentação, acabam sendo a
prova do que deveriam ilustrar. Em Comunicação chama-se a isso de
"ignorância da questão ou falsa causa". Uma citação de Garcia: "Se, à
noite, cruzo com um gato preto na rua, e logo adiante tropeço e caio e
admito que a causa da minha queda foi o encontro com o felino, estou
raciocinando por indução, sim, mas incidindo em erro, ao crer que o que
vem antes é a causa do que ocorre depois: post hoc ergo propter hoc
("depois disso, logo, por causa disso") .Mais à frente, diz-nos o mesmo
autor: "...os fenômenos de natureza espiritual, social, política, e até
econômica (estudados pelas ciências humanas) não podem ser atribuídos a
uma causa única mas a um complexo delas, nem sempre identificáveis porque
nem sempre constituem fatos materiais mensuráveis ou ponderáveis. Daí
porque decorrem muitas generalizações falsas ou parcialmente falsas"
.
Caracterizar o homossexualismo de um jovem como produto de uma
palavra impensada dita por um pai, é um exagero. A opção homossexual foi
uma maldição verbal? Dizer que um homem se tornou impotente porque sua
mulher zombou de sua virilidade pode ter alguma base psicológica, mas daí
a dizer que foi uma maldição, ou seja, uma permissão que a mulher deu a
Satanás para tornar o homem impotente, vai um exagero. Vim de uma família
com pouca instrução acadêmica. Quando criança, era o que se chamava de
"traça de livro". Sempre retirava livros da Biblioteca da Escola 10-14
Ceará, em Inhaúma, no Rio (um por dia). Meus pais gostavam, mas sempre
diziam: "Isso é agora, mais tarde arranja namorada e pára de estudar".
Tive namoradas, casei há 30 anos, e continuo estudando. Como toda criança,
também chorei. De raiva e de medo, por sentir dores, e fui chamado de
"mulherzinha" por chorar em certos momentos, coisa comum a uma criança.
Mas não me tornei homossexual. Se vamos fazer doutrinas teológicas em
experiências, reclamo valor para as minhas e as de tantos outros, que
diferem das que servem de lastro para as idéias do autor.
A rigor,
não há uma sistematização de idéias e conceitos para sustentar a tese de
que palavras impensadas ou ofensivas se tornam uma maldição sobre alguém.
Há uma série de casos (as experiências pessoais entre os evangélicos,
sabemos muito bem disso, sempre são superdimensionadas) acompanhados de
versículos fora do contexto, analisados isoladamente.
Algumas vezes
o livro descamba para a "avacalhação". Que me desculpe o autor pelo termo
forte, mas veja-se esta experiência: "Na frente de minha casa havia
nascido um pé de abóbora entre pedras de construção. Então declarei com
certo desdém: 'Eu te abençôo, ó pé de abóbora, e vamos ver o que
acontece'". Meses depois havia abóboras em profusão, e de bom tamanho.
Conclusão: "funciona até com abóboras" (p. 40). Ora, se assim é, estas
pessoas com palavras mágicas podem eliminar a fome do país.
Algumas
considerações resvalam para o absurdo. O autor teve problemas com um carro
que comprou. O Espírito Santo lhe falou: "Você já repreendeu as maldições
que porventura possam estar sobre esse carro? Não sabe que pessoas
amaldiçoadas e infiéis participaram de seu projeto e fabricação? Não
percebeu que em tantos anos, desde que você aprendeu sobre essa questão de
bênção e maldição, você não costumava atropelar animais; e nem com outro
carro? Esse é o primeiro" (p. 37). Repreendida a maldição, não houve mais
problemas com o carro. Uma questão: essas pessoas amaldiçoadas e infiéis
só participaram do projeto daquele carro? Era ele único, singular?
Amaldiçoados e infiéis não trabalharam nos outros carros? Por que os
outros não deram os mesmos problemas? Se atropelamos alguém a culpa deve
ser buscada no operário da linha de montagem? Ou na imprudência, no
açodamento, ou, ainda, num descuido?
A idéia do autor de que
devemos abençoar os bens que compramos porque tudo que usamos foi
produzido por pessoas que não temem a Deus, é ingênua. A influência do
orientalismo é cada vez maior no pensamento evangélico. Há muito do
panteísmo em nosso meio: seres espirituais estão nas coisas. Então estas
passam a ter moralidade, a ter valor a partir de uma palavra. A palavra
humana gera moralidade nos objetos. Isso é incrível! Como vudu é
explicável, mas em termos cristãos é insustentável! Um crente da Bahia me
procurou com uma dúvida: se ele comesse acarajé estaria comendo um
demônio? Porque lhe disseram que as baianas colocam um demônio em cada
acarajé. Ora, aonde vamos parar? Creio na existência de Satanás, mas está
se caindo num misticismo terrível: todo o desagradável da vida é obra do
Maligno. Se um pneu fura, foi obra de Satanás. Pode ter sido simplesmente
um prego. Já se pensou nisso?
O autor passa da hereditariedade
genética para uma hereditariedade espiritual (p. 45) ao declarar que há
famílias marcadas por gerações de alcoólatras. Mas há filhos de
alcoólatras que detestam bebida. Conheço um homem (omito seu nome) que
ganhou um concurso de maior bebedor de cerveja na sua cidade. Consumiu 36
garrafas, consecutivamente! Tem dois filhos pastores que não são,
obviamente, beberrões. Um homem santo como Ezequias gerou um ímpio como
Manassés. O ímpio Amom gerou um homem santo como Josias. "A alma que
pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai, nem o pai
levará a iniqüidade do filho..." (Ez 18.20). Defender um "adn espiritual"
é desconsiderar o ensino de Ezequiel 18.
Há também a questão de
maldição do nome. Há nomes que trazem maldição em si, pelo seu
significado, é a tese do autor (p. 34). Já vi gente orando para quebrar a
maldição do nome que foi posto em alguém. Isso é risível. Cláudio
significa "coxo, manco". Vem do latim claudicare. Havia um jogador chamado
Cláudio Adão que jogava muito. Não era um "aleijado de terra" (como o nome
significa). Paulo César Farias não teve o caráter do apóstolo Paulo nem a
grandeza de César. André significa "varonil, viril". As mulheres chamadas
Andréia são masculinizadas, por isso? Isaltino vem do alemão Isanhilde, a
guerreira (hilde) de ferro (isan). Era o nome de minha avó que passou para
meu pai. Não somos guerreiros e eu, particularmente, não sou de ferro.
Carolina é a forma italiana para o diminutivo de Carlos ( de kharal,
"homem", no alto alemão antigo).
Minha esposa tem Carolina no seu
nome. E é muito feminina, nada masculina.
Tiago é a forma grega do
hebraico Jacó, "suplantador". Poucas vezes vi uma pessoa tão desprendida
de bens como o Pastor Tiago Lima. Nunca soube que ele lesou alguém. Sei
que foi lesado algumas vezes. Presumir que o caráter de uma pessoa
dependerá do seu nome se choca com o ensino bíblico sobre a
responsabilidade pessoal, a individualidade, a capacidade humana de
decidir sua vida.
A questão mais marcante que transparece nesta
idéia é que Deus fica subordinado ao homem e a responsabilidade deste se
esvai. Palavras, mesmo impensadas, vão desatar conseqüências funestas (o
autor prioriza essas sobre as benéficas) sobre as pessoas. Elas serão bem
ou mal sucedidas de acordo com o que se falar delas. Deus, no raciocínio
exposto no livro, abençoa uma família inteira porque uma pessoa quebra uma
maldição de família. Parece com as célebres orações que ouvimos em nossas
igrejas: "Abençoa as famílias aqui representadas". Deus abençoa por
representação ou procuração, mesmo ao indiferente e rebelde? Ou pede um
relacionamento pessoal?
Sem querer ofender ao colega (no corpo do
livro fica se sabendo que ele é pastor), presumir que as palavras humanas
são oráculos que arruínam vidas é ignorar o ensino bíblico. É esquecer-se
do contexto bíblico global e perder de vista a progressividade da
revelação. Volto a um ponto que, me parece, é a origem de muitos
equívocos: não se pode ter uma visão fragmentária da Bíblia, isolando
versículos, tipo "caixinha de promessas". No caso, "caixinha de
maldições". A Bíblia há que ser vista como um todo.
Não há
maldição para o crente. "Portanto, agora, nenhuma condenação há para os
que estão em Cristo Jesus" (Rm 8.1) e "Cristo nos resgatou da maldição da
lei, fazendo-se maldição por nós..." (Gl 3.13). Utilizar as passagens do
Antigo Testamento onde Deus amaldiçoa Israel por quebrar o pacto e
transportá-las para nossos dias, é ignorar o ensino neotestamentário.
"Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus que
os justifica; quem os condenará? Cristo Jesus é que morreu, ou antes quem
ressurgiu dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também
intercede por nós" (Rm 8.33-34).
"Filhinhos, vós sois de Deus, e já
os tendes vencido; porque maior é aquele que está em vós do que aquele que
está no mundo" (1Jo 4.4).
O crente não está ao léu, vítima de
palavras humanas. O que está em nós, o Espírito Santo, é maior que aquele
que está no mundo. Os crentes somos "chamados, amados em Deus Pai, e
guardados em Jesus Cristo" (Jd, 1). O maldito no Novo Testamento é aquele
que não ama ao Senhor. Esse é anátema (termo grego que corresponde a
herem, "maldição" no hebraico): "Se alguém não ama ao Senhor, seja
anátema" (1Co 16.22). Mas o crente é do
Senhor.
Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho,
Igreja Batista de Cambuí, Campinas (http://www.ibcambui.org.br)
Só use as duas Bíblias traduzidas rigorosamente por equivalência formal a partir do Textus Receptus (que é a exata impressão das palavras perfeitamente inspiradas e preservadas por Deus), dignas herdeiras das KJB-1611, Almeida-1681, etc.: a ACF-2011 (Almeida Corrigida Fiel) e a LTT (Literal do Texto Tradicional), que v. pode ler e obter em BibliaLTT.org, com ou sem notas).
Somente use Bíblias traduzidas do Texto Tradicional (aquele perfeitamente preservado por Deus em ininterrupto uso por fieis): BKJ-1611 ou LTT (Bíblia Literal do Texto Tradicional, com notas para estudo) na bvloja.com.br. Ou ACF, da SBTB.