Diálogo entre
Julius Exclusus e S. Pedro, na Porta do Céu
Erasmo de Roterdam (15**)
Júlio: Basta. Sou Júlio, oligurino, P.M....
Pedro: P.M.Que é isso? Pestis Maxima?
J: Pontifex Maximus,
“seu” velhaco.
P:Se você é três vezes Maximus... nãopoderá entrar aqui, se não for também Optimus.
J: Impertinência! Você,
que não foi mais do que Sanctus em todas estas
eras -- e eu Sanctissimus, Sanctissimus
Dominus, Sanctitas, a própria Santidade, com bulas para prová- lo.
P: Não há diferença entre
ser santo e ser chamado Santo?... Deixe-me olhar um pouco mais de perto. Hum!Sinais de impiedade em abundância... Batina de padre, mas
armadura ensangüentada por baixo: olhos ferozes, boca insolente, testa impenetrável,corpo cheio de cicatrizes de pecados, hálito carregado de vinho, saúde
esgotada pela libertinagem. Ai, ameace quanto quiser, vou dizer-lhe quem é... É Júlio,
o Imperador que voltou do inferno...
J: Pare, senão eu
o excomungo...
P: Excomungar-me? Com
que direito, gostaria de saber?
J: O melhor dos direitos.Você não passa de um padre, talvez nem isso -- não pode consagrar. Abra, estou dizendo!
P: Tem de mostrar
seus méritos primeiro...
J: Que quer dizer
por méritos?
P: ensinou a
verdadeira doutrina?
J: Eu não. Estive
ocupado demais com a guerra. Há monges para cuidar da doutrina, se isso tem
alguma importância.
P: Ganhou almas para
Cristo pelo simples exemplo?
J: Mandei bom número
delas para Tártaro.
P: Fez algum milagre?
J: Psiu! Os milagres
estão fora de moda.
P: Foi aplicado em
suas orações?
J: O invencível Júlio
não devia responder a um pescador miserável. Todavia, vai saber quem sou e o
que sou. Primeiro, sou ligurino, e não judeu como você. Minha mãe era irmã
do grande Papa Sisto IV. O papa me fez um homem rico com o dinheiro da Igreja.Tornei-me cardeal. Tive meus infortúnios. Tive a doença francesa [sífilis].
Fui exilado, expulso de meu país, mas sempre soube que chegaria a ser papa...Consegui, em parte com o auxílio, em parte com o dinheiro que pedi emprestado
a juros, em parte com promessas. Creso não poderia ter fornecido todo o
dinheiro que eu queria. Os banqueiros o informarão a respeito. Mas eu triunfei... E
fiz mais pela Igreja e por Cristo do que qualquer papa antes de mim.
P: Que foi que você fez?
J: Aumentei as rendas.Inventei novos ofícios e os vendi... Cunhei novamente a moeda e
acumulei grandes somas por esse meio. Nada se pode fazer sem dinheiro. Em seguida
anexei Bolonha à Santa Sé... Pus em luta todos os príncipes da Europa.
Rasguei tratados, e mantive grandes exércitos no campo de luta. Cobri Roma de palácios;e deixei cinco milhões no tesouro atrás de mim...
P: Por que tomou Bolonha?
J: Porque queria
os rendimentos...
P: E a respeito de Ferrara?
J: O duque era um
miserável ingrato. Acusou-me de simonia, chamou-me de pederasta... Eu queria o ducado
de Ferrara para um filho que tinha, em que se poderia confiar que seria fiel
à Igreja, e que acabara de apunhalar o cardeal de Pavia.
P: Como? Papas com esposas
e filhos?
J: Esposas? Não, esposas,não, mas por que não filhos?...
P: Foi culpado dos crimes
de que o acusavam?
J: Isso não vem ao caso.
P: Não haverá meio de
remover um mau papa?
J: Absurdo! Quem pode removera mais alta de todas as autoridades?... Um papa só pode ser corrigido por
um concílio geral, mas nenhum concílio geral pode ser convocado sem o
consentimento do papa... Portanto ele não pode ser deposto por crime algum.
P: Por assassínio, não?
J: Não, nem mesmo que
fosse parricídio.
P: Por adultério, não?
J: Nem por incesto.
P: Nem por simonia.
J: Nem por 600 atos
de simonia.
P: Nem por envenenamento?
J: Não, nem por sacrilégio.
P: Nem por todos esses
crimes reunidos em uma só pessoa?
J: Acrescente-lhe mais 600,não há força que possa depor o papa.
P: Um privilégio novo
para meus sucessores -- ser o pior dos homens, e ainda ficar livre de castigo.Infeliz da Igreja que não pode sacudir um tal monstro dos ombros... O
povo devia insurgir-se de pedras na mão e arrancar os miolos de um patife desses...Se Satanás precisasse de vigário não poderia encontrar um mais adequado do quevocê. Qual a prova que apresentou de ser apóstolo?
J: Não é apostólico ampliar
a Igreja de Cristo?...
P: Como foi que você
ampliou a Igreja?
J: Enchi Roma de palácios...tropas de criados, exércitos, cargos...
P: A Igreja não tinha
nada disso quando foi fundada por Cristo...
J: Está pensando
naquele tempo antigo quando até um papa podia morrer de fome, com um punhado de
pobres bispos perseguidos à sua volta. O tempo mudou tudo... Veja agora nossas
igrejas suntuosas... bispos que parecem reis... cardeais luxuosamente servidos,
cavalo se mulas arreados de ouro e pedrarias e ferrados de ouro e prata. Acima de tudo,eu, o Supremo Pontífice, carregado sobre os ombros dos soldados em uma
cadeira de ouro, acenando majestosamente a mão a multidões adoradoras. Ouça o ruído
do canhão, as notas das trombetas, o rufar dos tambores. Observe as máquinas militares, a populaça gritando, as tochas acesas na rua e na praça, e os reisda terra a beijar os pés de minha Santidade... Olhe para tudo isso, e diga-me,não é magnífico?... Está percebendo que pobre bispo miserável você é,
comparado a mim?
P: Miserável insolente!
A fraude, a usura e a esperteza te fizeram papa... Levei a Roma gentílica a
reconhecer Cristo; tu a tornaste gentílica novamente. Paulo não falou nas
cidades que atacou, nas legiões que matou... falou em naufrágios, prisões,desgraças, aflições; esses foram seus triunfos apostólicos, essas foram
as glórias de um general cristão. Quando se gabava era das almas que resgatara
de Satanás, não de suas pilhas de ducados...
J: Tudo isso é novidade
para mim.
P: É possível. Com os
teus tratados e protocolos, teus exércitos e tuas vitórias, não tinhas tempo
para ler os Evangelhos... Fingias ser cristão, não és melhor do que um turco;
pensas como um turco, és licencioso como um turco. Se há alguma diferença, tu
és pior...
J: Então não quer abrir
o portão?
P: Antes para qualquer
outra pessoa do que para gente como tu...
J: Se não ceder tomarei
seu lugar à força. Neste momento estão fazendo uma bela destruição lá embaixo;
em breve terei 60.000 fantasmas atrás de mim.
P: Oh homem miserável!
Oh miserável Igreja! Não me surpreende que agora tão poucos se apresentem
aqui pedindo para entrar, quando a Igreja tem tais governantes. No entanto
deve haver bondade no mundo, também, quando um tal poço de iniqüidades pode
ser venerado apenas porque traz o nome de papa.