Eutanásia

Ó 2000 – Solano Portela

 

Salmo 31.5 “nas tuas mãos entrego o meu espírito; tu me remiste, SENHOR, Deus de verdade”.

 

 

Introdução:

Mesmo que a maioria das correntes de pensamentos atribua valor à vida, o critério de valor difere muito em cada uma dessas. Muitas contradizem o ensinamento da Palavra de Deus levando a decisões meramente utilitárias quanto ao término da vida humana. Essa situação faz com que o servo de Deus necessite basear suas convicções sobre a rejeição da eutanásia naquilo que a Bíblia nos revela sobre essa questão fazendo-o assumir uma postura positiva na preservação da vida e no cuidado aos que sofrem.

 

Simplificadamente, definimos eutanásia como o esforço humano no sentido de apressar a morte própria, ou a de um parente ou de alguém que está em sofrimento. Ela é apresentada pelos defensores como sendo uma extensão dos direitos humanos, no sentido de que cada um deveria ter o direito a decidir sobre a própria vida. O assunto, entretanto, transcende o suposto direito ao suicídio, pois postula o direito de alguém decidir sobre a vida de outro, baseado em uma condição arbitrária e intangível – a existência ou não de qualidade naquela vida a ser terminada.

 

Quando tratamos de eutanásia, não estamos falando de pena de morte, que é a execução de uma sentença punitiva, retributiva, procedente de um tribunal legalmente estabelecido e seguindo procedimentos uniformes. É verdade que a pena de morte envolve a decisão sobre a vida de outros, mas eutanásia baseia-se  na aferição subjetiva da vida que deveria ser terminada, examinando-se se ela perdeu o sentido, a qualidade ou o seu propósito.

 

Normalmente a maioria dos argumentos, tanto dos oponentes como dos defensores da eutanásia é baseada apenas na experiência e nos relatos de casos:

a.       Os proponentes da eutanásia, apresentarão uma experiência após outra de dor, sofrimento, despesas indevidas, que sacrificaram os vivos e sãos, somente para resultar na inevitável morte.

b.       Aqueles que se colocam contra a eutanásia, desfilam experiência após outra de casos aparentemente perdidos, de pessoas que se encontravam em extremo sofrimento e que só aguardavam (ansiosamente) a morte, para depois se recuperarem e viverem vidas produtivas e, principalmente, abençoadas para vários com quem mantiveram contato.

 

Reconhecemos que sensibilidade e entendimento provêm da experiência, mas o cristão tem por dever procurar sua postura ética e firmar a sua reação perante os problemas existenciais que a sociedade lhe aponta, como resultado de um desejo intenso e sincero de conhecer o que a Palavra de Deus fala, indica ou infere sobre o assunto. O que terá a Bíblia a dizer sobre a Eutanásia? Encontramos casos de término abreviado ou induzido da vida, aprovados por Deus? O que terá a Palavra de Deus a nos ensinar sobre esse assunto?

Questões sobre a eutanásia são bastante complexas e não poderiam ser examinadas em todos os detalhes nesse espaço nem respondermos a todas. Gostaríamos, entretanto, de levantar alguns princípios bíblicos que podem nortear a nossa discussão e firmar nossas convicções.

 

1. A Relevância do Debate sobre a Eutanásia

Eutanásia é um assunto que vem recebendo cada vez mais atenção em todo o mundo. Você sabia que existe uma organização mundial chamada ERGO (Euthanasia Research & Guidance Organization -- Organização de Pesquisa e Direcionamento sobre a Eutanásia), que publica seus anúncios e trabalhos na Internet? Na realidade, existem tantas organizações defensoras da Eutanásia, que elas se estruturaram em uma federação mundial (a World Federation of Right to Die Societies, ou Federação Mundial das Sociedades do Direito à Morte). Nos Estados Unidos, o estado do Oregon promulgou uma legislação que permitia a eutanásia, em 1987, chamado de Ato de Morte com Dignidade. Esta lei foi, posteriormente, em 1994 e 1997, submetida a dois plebiscitos, que a repeliram. Vários estados, dos Estados Unidos, possuem atos legislativos que estão presentemente sendo questionados na Corte Suprema daquele país, equivalente ao nosso Superior Tribunal Federal. Na Austrália, o território do Norte emitiu legislação permitindo a eutanásia, em 1995. Essa lei foi, em 1997, repelida pelo Parlamento Federal Australiano. Em paralelo a tudo isso, provavelmente todos já acompanharam as notícias contemporâneas sobre o trabalho do médico norte-americano, Dr. Jack Kevorkian, inventor da máquina do suicídio, que auxiliou pessoalmente várias pessoas a encontrarem a morte. Este médico, presentemente, responde a vários processos criminais, em função de suas ações em favor da eutanásia.

 

2. O Valor da Vida.

                O humanismo secular reconhece valor à vida, mas atribui a essa uma qualidade que é circunstancial (dependente das circunstâncias). Nesse sentido, a aferição subjetiva da qualidade de vida é determinante no julgamento se esta vida deve ser terminada ou não. A visão bíblica apresenta o valor da vida, como uma questão inerente ao fato de que ela é um dom de Deus. A própria criação da vida humana representa o ápice do trabalho criativo de Deus (Gn 1.26) e é chamado na Bíblia como sendo a “coroa da Criação”. Como o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus o seu valor não se desvanece.

                A visão humanista identifica sofrimento como sendo um fator que diminui essa “qualidade” de vida, chegando a legitimar o término dessa, quer voluntariamente, quer pelo arbítrio ou determinação de outro, como, por exemplo, a de um parente próximo.

                A visão bíblica, além de atribuir valor intrínseco à vida, e não circunstancial, possui outra visão do sofrimento. Ela reconhece que sofrimento não é algo desejável e pode diminuir o nosso desfrutar imediato desta vida, numa visão meramente temporal, como registra Paulo em 1 Co 1.8, “...a tribulação que nos sobreveio... foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida”. O sofrimento também pode ocorrer como resultado direto do pecado (Tg 4.8-9), mas, em várias ocasiões, ocorre dentro dos propósitos insondáveis de Deus, com a finalidade didática de nos ensinar alguma coisa. Nesse sentido, paradoxalmente, em vez de retirar qualidade da vida, pode adicionar qualidade real. O sofrimento pode fazer com que nos acheguemos e dependamos mais de Deus e capacitar, tanto ao que sofre como aos que dele precisam cuidar, ao aprendizado de lições preciosas para o crescimento conjunto dos fiéis, como ensina 2 Cr 1.3 e 4, que diz: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, pela consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus”. Com essa visão, pensando nos resultados benéficos, podemos até nos gloriar nas tribulações (Rm. 5.3-4).

Paulo também nos escreve que “aprendeu o segredo de estar contente em qualquer e toda situação” (Fl. 4.12). Não podemos confundir o direito de procurar a felicidade (dádiva de Deus aos homens), com o direito inexistente de se obter felicidade (prerrogativa da soberania de Deus). Ou seja, a ausência de felicidade aparente e temporal não diminui a qualidade de vida e não nos dá nenhuma prerrogativa sobre a decisão de vida ou morte, nossa e de outros, como defendem os proponentes da eutanásia.

 

3. Uma visão errada da morte.

Os proponentes da eutanásia olham a morte como uma “libertação” do sofrimento, mas possuem uma visão distorcida da existência, pois não consideram:

·         Que a morte é algo não natural, ou seja, é fruto do pecado e sobrevem ao homem em função da queda (Rm. 5.12).

·         Que a morte dos justificados por Deus, pelo trabalho de Cristo Jesus, é “preciosa aos olhos do Senhor” (Sl 116.12) porque por ela já se encontrarão com o seu criador, mas em nenhuma passagem há aprovação para que essa morte seja apressada ou para que a vida seja terminada arbitrariamente, essa morte ocorre no seio da providência divina.

·         Que a morte dos ímpios, longe de ser liberação de sofrimento, é o início do sofrimento eterno maior (Hb 9.27 e 10.31).

Qualquer compreensão meramente utilitária da vida e da morte, que não leve em consideração o fator “pecado” e o trabalho de redenção do nosso Senhor Jesus Cristo, não pode ser abraçado ou defendido pelo crente, pois fugirá aos ensinamentos da Palavra de Deus, nossa única regra de fé e de prática.

 

4. A Eutanásia e o Aborto.

Aqueles que defendem a eutanásia não gostam de classificar o aborto como tal, mas existe muita semelhança, porque o aborto, como está sendo amplamente praticado em vários países do mundo ocidental, é o término de uma vida humana, baseado numa decisão utilitária de outra pessoa. Também diz-se que o feto não possui ainda “qualidade de vida”. Podemos ver, assim, a semelhança da argumentação com a defesa da eutanásia. Não é nosso propósito tratar do aborto, mas esse é claramente contrário à palavra de Deus, que se refere ao feto como uma pessoa em vário trechos (ex.: Salmo 51.5; Lucas 1.41).

 

5. Qual Seria o Padrão Para Determinar o Término da Vida?

Os que defendem o término prematuro da vida dizem que a definição de interrupção da vida não é aleatória, mas segue certas regras pré-estabelecidas. Por elas o julgamento seria exercitado. Mas essas regras, quando examinadas, mostram-se subjetivas e realmente aleatórias. Por exemplo, os defensores do aborto dizem que o padrão de julgamento para sua execução é unicamente  a mera vontade da mãe: “a mulher é dona de seu próprio corpo...”, dizem e se a gravidez não tiver sido desejada a vida pode ser terminada. Nos abortos chamados de “terapêuticos” os pontos a considerar são a possibilidade de morte da mãe e a possibilidade de problemas físicos ou mentais, do bebê a nascer. É fácil de ver que assim que abrimos portas começamos a atravessar barreiras éticas estabelecidas pela Palavra de Deus e a tomar decisões egoístas, que não nos competem e que fogem à nossa capacidade de conhecimento. Se as definições nesse campo forem meramente práticas podemos, com facilidade, cair no que ocorre na Índia onde o aborto é praticado, ainda que ilegalmente, como base de seleção do sexo da criança. Semelhante definição é encontrada em muitas tribos de índios, que matam o primeiro recém-nascido se for do sexo feminino (a antiga prática da tribo Dâw, no norte do Amazonas, por exemplo, é a de deixar o primeiro recém-nascido, se do sexo feminino, ao relento para morrer por falta de cuidado).

 

Será que o padrão de término de uma vida pode ser assim subjetivamente estabelecido? Ele poderia ser dependente apenas da cabeça e das conclusões de cada um? Se esse padrão, ou essa maneira de gerarmos padrões, for aceita, o que impedirá de partirmos da eutanásia e aborto voluntário para a eutanásia e aborto imposto? O que impedirá que as pessoas virem vítimas, não apenas de seus próprios pecados e decisões erradas próprias, mas também de políticas populacionais, sociais, ou raciais, estabelecidos por um organismo maior – governamental ou eclesiástico? Vamos passar a defender o aborto obrigatório para diminuir os bolsões de pobreza? Não podemos esquecer o que já aconteceu na história. Na Alemanha Nazista  do III Reich havia uma expressão: leibensunwertes Leben – “a vida que não vale a vida”. Com esse moto justificou-se o genocídio e a matança de judeus, ciganos e pessoas aleijadas, pois a vida deles não “valia a pena ser vivida”. Hoje em dia vemos a nossa sociedade usurpar o lugar de Deus e procurar passar a determinar sobre quem deve ou pode morrer, fugindo totalmente aos padrões estabelecidos por Deus, em Sua Palavra.

 

6. Alguns Pontos Essenciais a Lembrar.

No meio desse debate, vamos nos lembrar desses seguintes pontos essenciais que nos são ensinados na Bíblia:

  1. A vida é uma dádiva preciosa de Deus (Gen 1.20-25).
  2. A vida humana é especialmente preciosa, porque Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Devemos portanto preservá-la e não tirá-la (Gen. 1.26 e 9.5-6).
  3. A morte não é o fim e nem uma fuga em si ao sofrimento, mas ela é o resultado do pecado (Rom. 6.23).
  4. Muitas vezes ela ocorre com sofrimento e dor, nos propósitos insondáveis de Deus, como tribulação e dor podem ocorrer sem relacionamento direto com a morte (2 Cor. 4.8-10).
  5. Esse sofrimento nem sempre é uma conseqüência direta do pecado (João 9.3), mas ocorre para que Deus seja glorificado.
  6. O destemor da morte é uma característica do servo de Deus (Fil. 1.21).
  7. É verdade que servos de Deus muitas vezes expressaram o desejo de morrer antes do tempo apontado por Deus, buscando encontrá-lo (Fil. 1.23), mas submeteram-se à vontade de Deus em suas vidas, sendo o exemplo maior o do nosso Senhor Jesus Cristo (Mat. 26.39).
  8. O homem é limitado em sua perspectiva e não pode definir os seus passos pelos resultados que espera (pragmatismo) pois esses não lhe são conhecidos (Mat. 26.29).

Os padrões éticos do crente são encontrados na Palavra de Deus e nela achamos todo o incentivo para valorizarmos a vida e nos empenharmos em preservá-la, suportando as tribulações com paciência e perseverança, para a Glória de Deus.

 

Conclusão

Como dissemos no início, eutanásia é um assunto complexo e nem todas as questões podem ser respondidas. Nossas experiências variam, mas as Escrituras fornecem uma âncora às decisões individuais que devem ser tomadas com a consciência tranqüila perante Deus. Os princípios são claros e devem ser observados, mas a aplicação específica nem sempre é tão evidente ou fácil. A maioria de nós terá que tomar decisões, cedo ou tarde, sobre o cuidado de nossos amados que podem se achar em situação de prolongado sofrimento. Outros trabalham em hospitais  superlotados e mal equipados onde as possibilidades para salvar vidas são limitadas e escolhas são feitas a cada dia – quem deve ser salvo? Qual o caso mais grave? Quem melhor “potencial” de vida? Quem tem “pior qualidade” de vida? Como decidir o que não conhecemos? Podemos até nos encontrar em uma situação na qual seremos participantes involuntários das decisões de outras pessoas de maior autoridade.

 

É importante sabermos que não nos compete tomar a vida, mas temos, sim, o dever de preservá-la. Temos que nos lembrar que Deus ama aos Seus e está ciente dos seus sofrimentos e das suas dores. Ele pode nos sustentar e nas ocasiões em que tivermos de tomar decisões, vamos buscar a sua presença em oração, e, com a Palavra de Deus na mão, aplicar os Seus princípios.

 



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