Clóvis
"No
qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo
do corpo dos pecados da carne, a circuncisão de Cristo; sepultados com ele no batismo,
nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre
os mortos" Cl 2:11-12
A
prática do batismo de crianças é frequentemente justificada com o argumento de
que o batismo é o equivalente neotestamentário da circuncisão. A passagem
bíblica em epígrafe é geralmente usada para provar esse argumento. No presente
artigo pretendemos analisar se esta passagem ensina que o batismo substituiu a
circuncisão na nova aliança. A pergunta que procuraremos responder é: Cl 2:11-12
ensina ou leva à conclusão de que a circuncisão é o antecedente bíblico do
batismo?
Sabemos
que nem sempre chegaremos a uma certeza do significado de um texto. Mesmo
assim, temos certeza que não pode significar algo que não significava para o
seu autor e seus leitores. Portanto, se Paulo não pretendia ensinar aos
colossenses que o batismo substitui a circuncisão, é muitíssimo improvável que
tal ensino possa ser extraído naturalmente da passagem.
Em
nosso trabalho, faremos uma análise do texto e procuraremos levantar o contexto
histórico e o propósito da carta. Também tentaremos relacionar a passagem com
outras cartas paulinas, mas sempre focados em Colossenses 2, evitando
aprofundar questões teológicas envolvidas. Evidentemente que é um trabalho tentativo
e a conclusão, sofre das limitações próprias de seu autor.
ANÁLISE GRAMATICAL
Para
análise gramatical, tomamos por base a Almeida Corrigida Fiel e o Stephen's
Textus Receptus, utilizando um critério puramente pessoal para essa escolha.
Contudo, uma comparação rápida com o texto crítico e com outras versões e
traduções não revelou diferenças significativas. O texto mais dissonante do
utilizado é a NVI, pelo que se recomenda para comparação.
Análise do texto
Começando
com o verso 11, temos No qual (εν ω), que se refere ao Senhor Jesus
Cristo, em quem habita "toda a plenitude da divindade" (v. 9) e
é "a cabeça de todo o principado e potestade"(v. 10b). também (και),
indica que há outra bênção e a encontramos na expressão "estais
perfeitos nEle" (v. 10a). Perfeito é completo, plenificado.
Em estais circuncidados(περιετμηθητε)
o aoristo e o indicativo do verbo dão a certeza de já foi realizado, de uma vez
por todas. Não há margem para dúvidas. com a circuncisão (περιτομη) não se
trata de circuncisão física, conforme fica mais claro a seguir. não feita por mão (αχειροποιητω).
Indica a natureza espiritual da circuncisão, pois denota "não feito por
mãos do homem" (Ef 2:11) ou "não desta criação" (Hb 9:11. Cf. Mc 14:58; At
7:48; 17:24; 2Co 5:1 Hb 9:24). E no despojo do corpo dos pecados da carne (εν
τη απεκδυσει
του σωματος
των αμαρτιων
της σαρκος), além da natureza
espiritual, temos que a extensão não se limita a uma parte do órgão sexual
masculino, mas à natureza humana. a circuncisão de Cristo (εν τη περιτομη
του χριστου). Não deve ser
uma referência à circuncisão de Jesus ao oitavo dia, mas mais provavelmente à
sua morte na cruz.
No
verso 12, temos sepultados com ele (συνταφεντες
αυτω). Como estamos em Cristo, somos sepultado juntamente
com ele. Não significa supultado nEle. no batismo (εν τω
βαπτισματι). Batismo aqui
pode ser a) o batismo de Jesus, no Jordão; b) o batismo de Jesus na cruz (Mc
10:38; Lc 12:50); o batismo do crente nas águas ou o batismo do crente em
Jesus. Considerando que se trata de batizado com Ele e não nEle, que a morte de
Jesus já foi referida pela circuncisão, resta o batismo de Jesus no Jordão e do
crente nas águas. Fico com esta última. nele também ressuscitastes (εν ω
και
συνηγερθητε). Se
morremos e somos sepultados com Jesus, então somos ressuscitados com Ele. Com
Ele, como na NVI, é uma melhor tradução. pela fé no poder de
Deus(δια της
πιστεως της
ενεργειας του
θεου). A fé no poder de Deus é o meio instrumental da ressurreição
do crente. que o ressuscitou dentre os mortos (του
εγειραντος
αυτον εκ των
νεκρων). Se Deus teve poder para ressuscitar
Jesus, pode nos ressuscitar também.
Contexto histórico
Colossos era uma cidade da província romana da Ásia, situada no vale do Lico,
formando um triângulo com Laodicéia e Hierápolis, ambas mencionadas no Novo
Testamento. No passado, tinha sido uma cidade próspera, mas no início da era
cristã estava ofuscada pelas suas vizinhas e reduzida a pouco mais que uma
vila. Nessa região havia todo tipo de filosofias e religiosos ambulantes
abundavam. Colossos também contava com uma expressiva colônia judaica e tinha
um constante influxo de novas ideias e doutrinas orientais. Enfim, era um solo
fértil para especulações religiosas e heresias e um desafio para a pureza do
evangelho.
Provavelmente
Colossos nunca seria mencionada no Novo Testamento se não houvesse uma igreja
ali. Mas havia. Não foi fundada por Paulo e não consta que tenha sido visitada
por ele, por isso não é mencionada em Atos. Paulo ouviu falar de sua fé, mas
nunca os encontrou pessoalmente. Contudo, uma igreja desconhecida, numa cidade
inexpressiva, recebe uma carta inspirada do grande apóstolo!
Muito
provavelmente Epafras foi o fundador e líder da igreja em Colossos, além de
outros moradores da cidade como Filemon, Áfia, Arquipo e outros, que podem ter
ouvido Paulo em Éfeso (160km) e compartilharam a fé com seus amigos, dando
origem à igreja, formada predominantemente por gentios, embora tivesse entre
seus membros judeus convertidos. Quando Paulo escreveu a carta, a igreja tinha
cerca de cinco anos de existência.
Estando
Paulo preso em Roma, Epafras vai à sua procura, para pedir-lhe ajuda. Algumas
doutrinas tinham chegado a Colossos e estavam invadindo a igreja, ameaçando a
paz e a pureza do evangelho. O que vem a ser exatamente essa "heresia
colossense" é objeto de discussão, mas é certo que se tratava de
uma combinação de misticismo oriental, legalismo judaico, astrologia pagã,
elementos do gnosticismo e do ascetismo, com uma pitada de cristianismo.
A
atratividade da heresia parecia ser a promessa de um tipo de união com Deus que
levava a pessoa à perfeição espiritual, passando a fazer parte da "aristocracia
espiritual" da igreja, através de práticas ritualíticas que
visavam obter um "conhecimento profundo" e de ascetismo
que evitava o contato com a matéria, inerentemente má. Embora seja mencionada
na refutação paulina, não parece que a circuncisão fosse um dos rituais
exigidos. Tampouco parece estar havendo alguma controvérsia envolvendo o
batismo. Paulo, em sua preocupação com a igreja, escreve a Epístola aos
Colossenses, e como Epafras permaneceu com ele, para ajudá-lo em sua prisão, a
mesma foi entregue por Onésimo e Tíquico.
O
propósito da carta, portanto, é refutar a heresia que campeava na igreja de
Colossos e restabelecer a verdade e a simplicidade do evangelho. Supor que
Paulo tinha a intenção de demonstrar que a circuncisão tinha se tornado
obsoleta, sendo suplantada pelo batismo cristão como novo sinal da aliança é
trazer para o texto elementos estranhos ao mesmo. O argumento paulino é, todo
ele, centrado na supremacia de Cristo e na suficiência de Sua obra e não numa
troca do sinal externo da regeneração.
Contexto literário
Os
versos 11 e 12 estão inseridos no parágrafo seguinte (Cl 2:4-12):
"E
digo isto, para que ninguém vos engane com palavras persuasivas. Porque, ainda
que esteja ausente quanto ao corpo, contudo, em espírito estou convosco,
regozijando-me e vendo a vossa ordem e a firmeza da vossa fé em Cristo. Como,
pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também andai nele, arraigados e
edificados nele, e confirmados na fé, assim como fostes ensinados, nela
abundando em ação de graças. Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa
sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens,
segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo; porque nele habita
corporalmente toda a plenitude da divindade; e estais perfeitos nele, que é a
cabeça de todo o principado e potestade; no qual também estais circuncidados
com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, a
circuncisão de Cristo; sepultados com ele no batismo, nele também
ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os
mortos."
Como vimos, a carta foi motivada
pelo relato de Epafras da situação da igreja, ameaçada por heresias gnósticas,
legalistas e ascéticas. Aparentemente, os crentes colossenses estavam sendo
convencidos que lhes faltava algo para serem espiritualmente completos; só crer
em Jesus não lhes bastava, parecia ser o ensino dos falsos mestres. Paulo
denuncia tais mestres como enganadores, advertindo-lhes "que ninguém vos
engane com palavras persuasivas", "por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos
homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo". Eles já haviam
recebido o Senhor Jesus Cristo, então tudo o que precisavam era continuar "nele,
arraigados e edificados nele, e confirmados na fé, assim como fostes ensinados,
nela abundando em ação de graças". Nada mais lhes era necessário, pois tinham Cristo, e "nele habita
corporalmente toda a plenitude da divindade".
O
cerne do argumento paulino é "e estais perfeitos nele". O termo
πεπληρωμενοι
significa estar completo, cheio, pleno. Uma versão traduz "tendes a vossa
plenitude nele". Nenhum ritual externo precisaria ser adicionado, pois em
Cristo eles já tinham obtido tudo o que os falsos líderes estavam prometendo.
Afirmar, portanto, que Paulo ensina que o batismo cristão substituiu a
circuncisão judaica é anular toda linha argumentativa do apóstolo. Se ele
dissesse "vocês não precisam ser circuncidados, pois foram
batizados", estaria enfraquecendo a afirmação de que em Cristo os
crentes de Colossos já estavam plenificados, completos, perfeitos.
Correlação e contexto bíblico
Entender
o ensino do apóstolo Paulo sobre batismo e circuncisão pode lançar luzes também
sobre essa passagem. Será que Paulo relacionava circuncisão e batismo, e caso
afirmativo, de que forma ele fazia?
As
declarações "dou graças a Deus porque a nenhum de vós batizei, exceto
Crispo e Gaio" (1Co 1:14) e "porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o
evangelho" (1Co 1:17) podem dar a impressão de que Paulo não tinha o
batismo em grande conta. Mas essas frases foram ditas num contexto em que ele
combatia o partidarismo corintiano e era "para que ninguém diga que fostes
batizados em meu nome" (1Co 1:15). Logo que ele se converteu "levantou-se e
foi batizado" (At 9:18). Estava por perto quando Lídia, o carcereiro e
Crispo foram batizados, este último pelo próprio (At 16:15; 33; 18:8; cf 1Co
1:14). Indicativo de que Paulo valorizava o batismo é que chegando em Éfeso e
sendo informado de que haviam sido batizados apenas com o batismo de João,
levou-os a serem batizados em nome de Jesus (At 19:3-4).
Paulo
entendia que "há um só Senhor, uma só fé, um só batismo" (Ef 4:5) e
que "fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para
que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim
também andemos nós em novidade de vida" (Rm 6:4). O poder para viver
essa dimensão ética do batismo é recebido no próprio ato, "porque todos
quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes" (Gl 3:27).
Da
leitura de todas as passagens paulinas sobre o batismo concluímos que ele jamais
faz alguma associação entre batismo e circuncisão. Aliás, o tema circuncisão é
mais recorrente que o do batismo nos relatos e cartas paulinos, e ele jamais menciona
que a circuncisão foi substituída pelo sacramento do batismo.
Paulo
esteve presente no Concílio de Jerusalém, em que a posição dos fariseus
crentes, que entendia quanto aos cristãos gentios ser "necessário
circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de Moisés" (At 15:5).
Era o momento para Paulo, Pedro ou Tiago eximirem os crentes da circuncisão com
o argumento de que haviam sido batizados nas águas. Porém, a linha de defesa
adotada foi a concessão do Espírito Santo e a purificação do coração pela fé.
Entre as coisas essenciais a que eles foram sujeitados em lugar da circuncisão
não constava o batismo.
Digno
de nota é o fato de que Paulo, encarregado de levar a mensagem aos cristãos
gentios, tendo encontrado "um discípulo chamado Timóteo" (At
16:1), "quis Paulo que ele fosse em sua companhia e, por isso,
circuncidou-o por causa dos judeus daqueles lugares" (At 16:3).
Ora, isso mostra que Paulo não via a circuncisão como substituto para o
batismo, do contrário, argumentaria com os judeus nesse sentido. Contudo, em
outra ocasião, disse que "nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi
constrangido a circuncidar-se" (Gl 2:3). Incoerência? Seria, se o batismo tivesse
substituído a circuncisão na igreja, pois tanto Timóteo como Tito já haviam
sido batizados. Mas como um era filho de judia, cabia-lhe ser circuncidado,
como o outro era grego, não estava sob essa imposição cultural.
No
início da carta aos Romanos Paulo argumenta em favor da inutilidade da
circuncisão. "Qual a utilidade da circuncisão?" (Rm 3:1),
pergunta. Para ele, "a circuncisão, em si, não é nada" (1Co 7:19), "pois nem
a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova
criatura" (Gl 6:15). Note que Paulo não contrapõe circuncisão e
batismo, mas circuncisão e novo nascimento. Como nascemos de novo "nós é que somos
a circuncisão, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo
Jesus, e não confiamos na carne" (Fp 3:3).
Como
podemos ver, seja no seu combate às tentativas judaizantes de impor a
circuncisão aos gentios crentes, seja na sua exposição positiva do batismo, em
nenhuma das situações Paulo recorre ao batismo como sucedâneo cristão da
circuncisão. Este é um pensamento estranho ao apóstolo Paulo ao falar de
batismo e circuncisão.
Vimos,
acima, que Paulo não tinha a intenção de ensinar em Cl 2:11-12 o batismo como sucedâneo
da circuncisão. O argumento paulino contra a filosofia colossense era que em
Cristo os cristãos já estão plenificados, não carecendo de nenhum ritual para
se realizarem espiritualmente. Argumentar, baseado neste texto, que o batismo é
mero substituto do batismo tira a força do argumento de Paulo. Pois iria na
direção de que a circuncisão não é necessária, não porque em Cristo "habita
corporalmente toda a plenitude da divindade; e estais perfeitos nele" (Cl 2:10), mas
devido ao fato deles terem sido batizados, sendo que o batismo, assim como a
circuncisão é "feito por mão" de homem.
Soli Deo Gloria
Clóvis
http://cincosolas.blogspot.com.br/2011/01/batismo-e-circuncisao-em-cl-211-12.html
(copiado em 15.maio.2014)
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