Em certa ocasião o Senhor Jesus teve de fazer uma escolha entre
ter 5 mil pessoas que o seguiam por causa dos benefícios que
poderiam obter dele, ou ter doze seguidores leais, que o seguiam
pelo motivo certo (e mesmo assim, um deles o traiu). Em outras
palavras, uma decisão entre muitos consumidores e poucos fiéis
discípulos. Refiro-me ao evento da multiplicação dos pães narrado
em João 6. Lemos que a multidão, extasiada com o milagre, quis
proclamar Jesus como rei, mas ele recusou-se (João 6.15). No dia
seguinte, Jesus também se recusa a fazer mais milagres diante da
multidão pois percebe que o estão seguindo por causa dos pães que
comeram (6.26,30). Sua palavra acerca do pão da vida afugenta
quase que todos da multidão (6.60,66), à exceção dos doze
discípulos, que afirmam segui-lo por saber que ele é o Salvador, o
que tem as palavras de vida eterna (6.67-69).
O Senhor Jesus poderia ter satisfeito às necessidades da
multidão e saciado o desejo dela de ter mais milagres, sinais e
pão. Teria sido feito rei, e teria o povo ao seu lado. Mas o
Senhor preferiu ter um punhado de pessoas que o seguiam pelos
motivos certos, a ter uma vasta multidão que o fazia pelos motivos
errados. Preferiu discípulos a consumidores.
Infelizmente, parece prevalecer em nossos dias uma mentalidade
entre os evangélicos bem semelhante à da multidão nos dias de
Jesus. Parece-nos que muitos, à semelhança da sociedade em que
vivemos, têm uma mentalidade de consumidores quando se trata das
coisas do Reino de Deus. O consumismo característico da nossa
época parece ter achado a porta da igreja evangélica, tem entrado
com toda a força, e para ficar.
Por consumismo quero dizer o impulso de satisfazer as
necessidades, reais ou não, pelo uso de bens ou serviços prestados
por outrem. No consumismo, as necessidades pessoais são o centro;
e a "escolha" das pessoas, o mais respeitado de seus direitos.
Tudo gira em torno da pessoa, e tudo existe para satisfazer as
suas necessidades. As coisas ganham importância, validade e
relevância à medida em que são capazes de atender estas
necessidades.
Esta mentalidade tem permeado, em grande medida, as
programações das igrejas, a forma e o conteúdo das pregações, a
escolha das músicas, o tipo de liturgia, e as estratégias para
crescimento de comunidades locais. Tudo é feito com o objetivo de
satisfazer as necessidades emocionais, psicológicas, físicas e
materiais das pessoas. E neste afã, prevalece o fim sobre os
meios. Métodos são justificados à medida em que se prestam para
atrair mais freqüentadores, e torná-los mais felizes, mais
alegres, mais satisfeitos, e dispostos a continuar a freqüentar as
igrejas.
Esta mentalidade consumista por parte de evangélicos se mostra
por vários ângulos. Numa pesquisa recente feita pelo instituto
Gallup nos Estados Unidos constatou-se que quatro a cada 10
americanos estão envolvidos em pequenos grupos que se reúnem
semanalmente buscando saída para o envolvimento com drogas,
problemas familiares, solidão e isolacionismo. Embora
evidentemente muitos estarão em busca de uma oportunidade para
aprofundar a experiência cristã e crescer no conhecimento de Deus,
a maioria, segundo Gallup, busca satisfazer suas necessidades
pessoais. De acordo com a revista Newsweek, um a cada cinco
americanos sofre de alguma forma de doença mental (incluindo
ansiedade, depressão clínica, esquizofrenia, etc.) durante o curso
de um ano. E disso se aproveitam os espertos. Uma denúncia contra
a indústria evangélica de saúde mental foi feita ano passado por
Steve Rabey em Christianity Today. Cada vez mais cresce o
marketing nas igrejas na área de aconselhamento, com um número
alarmante de profissionais cristãos oferecendo ajuda psicológica
através de métodos seculares. A indústria de música cristã tem
crescido assustadoramente, abandonando por vezes seu propósito
inicial de difundir o Evangelho, e tornando-se cada vez mais um
mercado rentável como outro qualquer. A maioria das gravadoras
evangélicas nos Estados Unidos pertence à corporações seculares de
entretenimento. As estrelas do gospel music cobram cachês
altíssimos para suas apresentações. Num recente artigo em
Strategies for Today’s Leader, Gary McIntosh defende abertamente
que "o negócio das igrejas é servir ao povo". Ele defende que a
igreja deve ter uma mentalidade voltada para o "cliente", e traçar
seus planos e estratégias visando suas necessidades básicas, e
especialmente faze-los sentir-se bem.
Um efeito da mentalidade consumista das igrejas é o que tem
sido chamado de "a síndrome da porta de vai-e-vem". As igrejas
estão repletas de pessoas buscando sentido para a vida, alívio
para suas ansiedades e preocupações. Assim, elas escolhem igrejas
como escolhem refrigerantes. Tão logo a igreja que freqüentam
deixa de satisfazer as suas necessidades, elas saem pela porta tão
facilmente quanto entraram. As pessoas buscam igrejas onde se
sintam confortáveis, e se esquecem de que precisam na verdade de
uma igreja que as faça crescer em Cristo e no amor para com os
outros.
Creio que há vários fatores que provocaram a presente situação.
Ao meu ver, um dos mais decisivos é a influência da teologia e dos
métodos de Charles G. Finney no evangelicalismo moderno. Houve uma
profunda mudança no conceito de evangelização ocorrida no século
passado, devido ao trabalho de Charles Finney. Mais do que a
teologia do próprio Karl Barth, a teologia e os métodos de Finney
têm moldado o moderno evangelicalismo. Ele é o herói de Jerry
Falwell, Bill Bright e de Billy Graham; é o celebrado campeão de
Keith Green, do movimento de sinais e prodígios, do movimento
neopentecostal, e do movimento de crescimento da igreja. Michael
Horton afirma que grande parte das dificuldades que a igreja
evangélica moderna passa é devida à influência de Finney,
particularmente de alguns dos seus desvios teológicos: "Para
demonstrar o débito do evangelicalismo moderno a Finney, devemos
observar em primeiro lugar os desvios teológicos de Finney Estes
desvios fizeram de Finney o pai dos fatores antecedentes aos
grandes desafios dentro da própria igreja evangélica hoje: o
movimento de crescimento de igrejas, o neopentecostalismo, e o
reavivalismo político".
Para muitos no Brasil seria uma surpresa tomar conhecimento do
pensamento teológico de Finney. Ele é tido como um dos grandes
evangelistas da Igreja Cristã, e estimado e venerado por
evangélicos no Brasil como modelo de fé e vida. E não poderia ser
diferente, visto que se tem publicado no Brasil apenas obras que
exaltam Finney. Desconheço qualquer obra em português que
apresente o outro lado. Meu alvo, neste artigo, não é escrever
extensamente sobre o assunto, mas mostrar a relação de causa e
efeito que existe entre o ensino e métodos de Finney e a
mentalidade consumista dos evangélicos hoje.
Em sua obra sobre teologia sistemática (Systematic Theology
[Bethany, 1976]), escrita pelo fim de seu ministério, quando era
professor do seminário de Oberlin, Finney revela ter abraçado
ensinos estranhos ao Cristianismo histórico. Ele ensina que a
perfeição moral é condição para justificação, e que ninguém poderá
ser justificado de seus pecados enquanto tiver pecado em si (p.
57); afirma que o verdadeiro cristão perde sua justificação (e
conseqüentemente, a salvação) toda vez que peca (p. 46); demonstra
que não acredita em pecado original e nem na depravação inerente
ao ser humano (p. 179); afirma que o homem é perfeitamente capaz
de aceitar por si mesmo, sem a ajuda do Espírito Santo, a oferta
do Evangelho. Mais surpreendente ainda, Finney nega que Cristo
morreu para pagar os pecados de alguém; ele havia morrido com um
propósito, o de reafirmar o governo moral de Deus, e nos dar o
exemplo de como agradar a Deus (pp. 206-217). Finney nega ainda,
de forma veemente, a imputação dos méritos de Cristo ao pecador, e
rejeita a idéia da justificação com base da obra de Cristo em
lugar dos pecadores (pp. 320-333). Quanto à aplicação da redenção,
Finney nega a idéia de que o novo nascimento é um milagre operado
sobrenaturalmente por Deus na alma humana. Para ele, "regeneração
consiste no pecador mudar sua escolha última, sua intenção e suas
preferência; ou ainda, mudar do egoísmo para o amor e a
benevolência", e tudo isto movido pela influência moral do exemplo
de Cristo ao morrer na cruz (p. 224).
Finney, reagindo contra a influência calvinista que predominava
no Grande Avivamento ocorrido na Nova Inglaterra do século
passado, mudou a ênfase que havia à pregação doutrinária para uma
ênfase à fazer com que as pessoas "tomassem uma decisão", ou que
fizessem uma escolha. No prefácio da sua Systematic Theology ele
declara a base da sua metodologia: "Um reavivamento não é um
milagre ou não depende de um milagre, em qualquer sentido. É
meramente o resultado filosófico da aplicação correta dos
métodos."
Finney não estava descobrindo uma nova verdade, mas abraçando
um erro antigo, defendido por Pelágio no século IV, e condenado
como herético pela Igreja, ou seja, que nenhum de nós nasce
pecador; o homem, por nascimento, é neutro, e capaz de fazer
escolhas para o bem e para o mal com inteira liberdade. Finney tem
sido corretamente descrito por estudiosos evangélicos como sendo
semi-pelagiano (ou mesmo, pelagiano) em sua doutrina, e um dos
responsáveis maiores pela disseminação deste erro antigo entre as
igrejas modernas.
Na teologia de Finney, Deus não é soberano, o homem não é um
pecador por natureza, a expiação de Cristo não é um pagamento
válido pelo pecado, a doutrina da justificação pela imputação é
insultante à razão e à moralidade, o novo nascimento é produzido
simplesmente por técnicas bem sucedidas, e avivamento é o
resultado de campanhas bem planejadas com os métodos corretos.
Antes de Finney, os evangelistas reformados aguardavam sinais
ou evidências da operação do Espírito Santo nos pecadores,
trazendo-os debaixo de convicção de pecado, para então guiá-los à
Cristo. Não colocavam pressão sobre a vontade dos pecadores, por
meio psicológicos, com receio de produzir falsas conversões.
Finney, porém, seguiu caminho oposto, e seu caminho prevaleceu. Já
que acreditava na capacidade inerente da vontade humana de tomar
decisões espirituais quando o desejasse, suas campanhas de
evangelismo e de reavivamento passaram a girar em torno de um
simples propósito: levar os pecadores a fazer uma escolha imediata
de seguir a Cristo. Com isto, introduziu novos métodos nos seus
cultos, como o "banco dos ansiosos" (de onde veio a prática de se
fazer apelos ao final da mensagem), o uso de qualquer medidas que
provocassem um estado emocional propício ao pecador para escolher
a Deus, o que incluía apelos emocionais e denúncias terríveis do
pecado e do juízo.
O impacto dos métodos reavivalistas de Finney no
evangelicalismo moderno são tremendos. Seus sucessores têm
perpetuado estes métodos e mantido as características do fundador:
o apelo por decisões imediatas, baseadas na vontade humana; o
estímulo das emoções como alvo do culto; o desprezo pela doutrina;
e a ênfase que se dá na pregação a se fazer uma escolha, em vez da
ênfase às grandes doutrinas da graça. As igrejas evangélicas de
hoje, influenciadas pela teologia e pelos métodos de Finney,
acreditando que reavivamentos podem ser produzidos, e que
pecadores podem decidir seguir a Cristo quando o desejarem, têm
adotado táticas e práticas em que as pessoas são vistas como
clientes, e que promovem a mentalidade consumista nas igrejas
evangélicas.
A relação entre os métodos de Finney e o espírito consumista
moderno foi corretamente notado por Rodney Clapp, em recente
artigo na Christianity Today (Outubro de 1966): "Ao enfatizar a
importância de se tomar uma decisão para Cristo, Charles Finney e
outros reavivalistas ajudaram na sacramentalização da ‘escolha’,
elemento chave do consumismo capitalista de hoje. O reavivalismo
[de Finney] encorajava sentimentos de êxtase e a abertura do
indivíduo para mudanças costumeiras de conversão e reconversão"
(p. 22).
O Senhor Jesus preferiu doze seguidores genuínos a ter uma
multidão de consumidores. Creio que a igreja evangélica brasileira
precisa seguir a Cristo também aqui. É preciso que reconheçamos
que as tendências modernas em alguns quartéis evangélicos é a de
produzir consumidores, muito mais que reais discípulos de Cristo,
pela forma de culto, liturgias, atrações, e eventos que promovem.
Um retorno às antigas doutrinas da graça, pregadas pelos apóstolos
e pelos reformadores, enfatizando a busca da glória de Deus como
alvo maior do homem, poderá melhorar esse estado de coisas.
autor: Augustus Nicodemus
Lopes
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