A "Marcha Para Jesus": Uma Avaliação Crítica
(2a edição revisada)
*
Autor: Augustus Nicodemus Lopes**
Introdução
A "Marcha para Jesus" é um evento que acontece em muitas cidades do Brasil,
patrocinado pela Igreja Apostólica Renascer em Cristo, e consiste basicamente
numa grande passeata de evangélicos com shows gospel. O evento ocorre desde 1993
no Brasil e costumava dividir opiniões tanto na mídia secular quanto evangélica.
Hoje, já mais arrefecida, a "Marcha" continua chamando a atenção, embora com
menos intensidade. O presente artigo visa apresentar uma análise crítica, não do
evento propriamente dito, mas das razões e argumentos apresentados para
justificar o evento. Estas razões e argumentos, bem como informações
institucionais e históricas sobre a Marcha estão disponíveis no site
www.marchaparajesus.com.br (em 12/01/2005).
Histórico da Marcha para Jesus
Conforme informações do referido site, a primeira Marcha para Jesus aconteceu
em 1987 na cidade de Londres (Inglaterra), e foi fundada pelo pastor Roger
Forster, pelo cantor e compositor Graham Kendrick, Gerald Coates e Lynn Green.
Portanto, não é uma invenção da Igreja Renascer do Brasil. Ela simplesmente
importou a idéia para nossa pátria. No início da década de 90, a Marcha se
tornara um evento de proporções continentais, ocorrendo em toda Europa. Em 1992
a Marcha para Jesus já se tornava em um movimento mundial, chegando a outros
países da América, África e Ásia. No ano de 1993, chega a vez do Brasil realizar
a sua primeira edição do evento, sob a orientação da Renascer. A partir daí, a
cada ano, o evento toma mais e mais aspecto de show gospel, apresentação de
artistas evangélicos e desfiles, sempre com muita dança ao som de pagode e axé
ditos evangélicos. Em alguns locais, não sabemos se de acordo com a coordenação
da Marcha ou não, políticos evangélicos têm aproveitado a oportunidade.
A Ideologia por Detrás da Marcha
Existe uma justificativa teológica elaborada para a Marcha, que procura
abonar o evento à luz da Bíblia. Os pontos abaixo foram retirados do site Marcha
para Jesus (
www.marchaparajesus.com.br) e se constituem na "teologia da Marcha". Aliás,
a maior parte deles se encontra exatamente debaixo do tópico "teologia" no site
da Marcha. Segue um resumo dos principais argumentos, entre outros, seguidos de
um breve comentário.
- A ordem de "marchar" aparentemente foi dada mediante revelação do Espírito
Santo. Diz o site:
A visão inicial da Marcha para Jesus, como qualquer outra ação em que os
cristãos empreendem para Deus, está baseado [sic!] no conhecimento e na
obediência. Nós acreditamos que Deus diz para nós marcharmos, e esta
obediência precede uma revelação. O Espírito Santo de Deus nos conduz em toda
a verdade (João 16:13) e a teologia do ato de marcharmos para Jesus emerge
quando nós nos engajamos em ouvir o que o Espírito Santo está dizendo para uma
Igreja atuante e batalhadora nesta terra.
Comentário: O parágrafo acima não é claro, mas dá a entender que a
visão inicial foi mediante uma revelação de Deus, seguida da obediência da
Renascer, em cumprir a visão. Líderes da Renascer negam que a visão inicial
foi dada por revelação. Contudo, o parágrafo acima sugere que a visão da
Marcha foi dada pelo Espírito para a Renascer. Quando nos lembramos que a
Renascer tem um "apóstolo" (uso o termo entre aspas, não por qualquer
desrespeito ao líder da Renascer, mas porque não creio que existam apóstolos
hoje à semelhança dos Doze e de Paulo), imagino que "revelações" (uso o termo
entre aspas não por desrespeito às práticas da Renascer, mas porque não creio
que existam novas revelações da parte de Deus hoje) devam ser freqüentes.
- Segundo a Renascer, a Marcha é uma declaração teológica: a Igreja está em
movimento e está viva! É o meio pelo qual os cristãos querem ser conhecidos
publicamente como discípulos de Jesus.
Comentário: Se esta é a forma bíblica dos cristãos mostrarem que
estão vivos e que são seguidores de Jesus, é no mínimo estranho que não
encontremos o menor traço de marchas para Jesus no Novo Testamento, ou para
Deus no Antigo.
- A Marcha é entendida como uma celebração semelhante às do Antigo
Testamento, possuindo uma qualidade extremamente espontânea e alegre.
Participam da Marcha jovens de caras pintadas, cartazes, roupas coloridas e
canções vivazes. Isto é visto como uma celebração do amor extravagante de Deus
para o mundo.
Comentário: Na minha avaliação, o ponto acima dificilmente pode ser
tomado como um argumento bíblico ou teológico para justificar o evento. As
"marchas" de Israel no Antigo Testamento, não tinham como alvo evangelizar os
povos - ao contrário, eram marchas de guerra, para conquistá-los ou
exterminá-los, conforme o próprio Deus mandou naquela época. Fica difícil
imaginar os israelitas organizando uma marcha através de Canaã, com os levitas
tocando seus instrumentos e dando shows, para ganhar os cananeus para a fé no
Deus de Israel!
- Marchar para Jesus é visto também como um ato profético que dá
consciência espiritual às pessoas. Josué mobilizou as pessoas de Israel para
marchar ao redor das paredes de Jericó. Jeosafá marchou no deserto entoando
louvores a Deus. Quando os cristãos marcham, estão agindo profeticamente, diz
a Renascer.
Comentário: Entendo que se trata de um uso errado das Escrituras.
Por exemplo: se vamos tomar o texto de Josué como uma ordem para que os
cristãos marchem, por que então somente marchar? Por que não tocar trombetas?
E por que só marchar uma vez, e não sete ao redor da cidade inteira? E por que
não mandar uma arca com as tábuas da lei na frente? E por que não ficar
silencioso as seis primeiras vezes e só gritar na sétima?
- Marchar para Jesus traz uma sensação natural de estar reivindicando o
lugar no qual os participantes caminham. Acredita-se que assim libera-se no
mundo espiritual a oportunidade desejada por Deus: "Todo o lugar que pisar a
planta do vosso pé, eu a darei ..." (Josué 1.3).
Comentário: Será esta uma interpretação correta das Escrituras?
Podemos tomar esta promessa de Deus a Josué e ao povo de Israel como sendo uma
ordem para que os cristãos de todas as épocas marquem o terreno de Deus
através de marchas? Que evangelizem, conquistem, e ganhem povos e nações para
Jesus através de marchar no território deles? Que estratégia é esta, que nunca
foi revelada antes aos apóstolos, Pais da Igreja, missionários, reformadores,
evangelistas, de todas as épocas e terras, e da qual não encontramos o menor
traço na Bíblia?
- A Marcha destrói as fortalezas erguidas pelo inimigo em certas áreas
das cidades e regiões onde ela acontece, declarando com fé que Jesus Cristo é
o Senhor do Brasil.
Comentário: Onde está a fundamentação bíblica para tal? Na verdade,
este ponto é baseado em conceitos do movimento de batalha espiritual,
especialmente o conceito de espíritos territoriais, e em conceitos da
confissão positiva, que afirmam que criamos realidades espirituais pelo poder
das nossas declarações e palavras.
- Os defensores da Marcha dizem que ela projeta a presença dos
evangélicos na mídia de todo o Brasil.
Comentário: É verdade, só que a projeção nem sempre tem sido
positiva. Além de provocar polêmica entre os próprios evangélicos, a mídia
secular tem tido por vezes avaliação irônica e negativa.
- Os defensores da Marcha dizem que ela projeta a presença dos
evangélicos na mídia de todo o Brasil.
Comentário: É verdade, só que a projeção nem sempre tem sido
positiva. Além de provocar polêmica entre os próprios evangélicos, a mídia
secular tem tido por vezes avaliação irônica e negativa.
- Os defensores da Marcha dizem que pessoas se convertem no evento.
Comentário: Não nos é dito qual é o critério usado para identificar
as verdadeiras conversões. Se for levantar a mão ou vir à frente durante os
shows e as pregações da Marcha, é um critério bastante questionável. As
estatísticas que temos nos dizem que apenas 10% das pessoas que atendem a um
apelo em cruzadas de evangelização em massa, como aquelas de Billy Graham,
permanecem nas igrejas. Mas, mesmo considerando as conversões reais, ainda não
justificaria, pois não raras vezes Deus utiliza meios para converter pessoas,
meios estes que não se tornam legítimos somente porque Deus os usou. Por
exemplo, o fato de que maridos descrentes se convertem através da esposa
crente não quer dizer que Deus aprova o casamento misto e nem que namorar
descrentes para convertê-los seja estratégia evangelística adequada.
- Os defensores dizem ainda que a Marcha promove a unidade entre os
cristãos. Em alguns lugares do mundo, a Marcha é concluída com um "pacto"
entre as denominações, confissões e indivíduos, exigindo que cada um deles não
faça mais discriminação por razões doutrinárias.
Comentário: Sou favorável à unidade entre os verdadeiros cristãos.
Mas não a qualquer preço e não qualquer tipo de união. A unidade promovida
pela Marcha, sob as condições mencionadas acima, tem o efeito de relegar a
doutrina bíblica a uma condição secundária. O resultado é que se deixa de dar
atenção à doutrina. Em nome da unidade, abandona-se a exatidão doutrinária.
Deixa-se de denunciar os erros doutrinários grosseiros que estão presentes em
muitas denominações, erros sobre o ser de Deus, sobre a pessoa de Jesus
Cristo, a pessoa e atuação do Espírito, o caminho da salvação pela fé somente,
etc. Unidade entre os cristãos é boa e bíblica somente se for em torno da
verdade. Jamais devemos sacrificar a verdade em nome de uma pretensa unidade.
A unidade que a Marcha mostra ao mundo não corresponde à realidade. Ela acaba
escondendo as divisões internas, os rachas doutrinários, as brigas pelo poder
e as divisões que existem entre os evangélicos. Se queremos de fato unidade,
vamos encarar nossas diferenças de frente e procurar discuti-las e resolve-las
em concílios, reuniões, na mesa de discussão - e não marchando.
- Os defensores da Marcha dizem que ela é uma forma de proclamação do
Evangelho ao mundo.
Comentário: A resposta que damos é que a proclamação feita na Marcha
vem misturada com apresentações de artistas gospel profissionais, ambiente de
folia e danceteria, a ponto de perder-se no meio destas outras coisas. Além do
mais, a mensagem proclamada é aquela da Renascer em Cristo, com a qual
naturalmente as igrejas evangélicas históricas não concordariam, pois é
influenciada pela teologia da prosperidade e pela batalha espiritual.
É evidente que, analisada de perto, a "teologia da Marcha" não se constitui
em teologia propriamente dita. Os argumentos acima não provam que há uma
revelação para que se marche, e não justificam a necessidade de os cristãos
obedecerem organizando marchas. Não há qualquer justificativa bíblica para que
os cristãos façam marchas, nem qualquer sustentação bíblica para a idéia de "dar
a Deus a oportunidade" mediante uma marcha, ou ainda de que, marchando e
declarando, se conquistam regiões e cidades para Cristo. Se há fundamento
bíblico, por que os primeiros cristãos não o fizeram? Por que historicamente a
Igreja Cristã nunca fez?
Pelos motivos acima, entendo que os argumentos bíblicos e teológicos
apresentados para justificar a Marcha para Jesus não procedem. Nada tenho contra
que cristãos organizem uma Marcha para Jesus. Apenas acho que não deveriam
procurar justificar bíblica e teologicamente como se fosse um ato de obediência
à Palavra de Deus. Neste caso, estão condenando como desobedientes todos os
cristãos do passado, que nunca marcharam, e os que, no presente, também não
marcham.
* Este
texto foi originalmente publicado no site da
Igreja Presbiteriana do Brasil em 17/01/2005
** O autor é paraibano, casado com Minka, pai de Hendrika (19), Samuel
(16), David (15), Anna (13). Pastor presbiteriano (IPB), mestre e doutor em
Interpretação Bíblica (África do Sul, Estados Unidos e Holanda), chanceler da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor de exegese, Bíblia, pregação
expositiva no Centro Presbiteriano de Pós Graduação Andrew Jumper, da IPB,
autor de vários livros.
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